Confesso que desde aquela noite em que José Sócrates foi entrevistado na RTP por um José Alberto de Carvalho e uma Judite de Sousa embevecidos e lhes disse (e eles convencidos que sim) que a dívida pública portuguesa (aquilo que poucos anos depois gerou taxas de juro incomportáveis e determinou a intervenção da troika) era uma questiúncula circunstancial provocada pelo aumento de então do preço do petróleo, desde então, dizia eu, que não vi tal descaramento num primeiro ministro. Até que entra António Costa e as touradas.
Bom, não quero discutir touradas. Desde que não me obriguem a ver espetáculo tão indecoroso, não me interesso muito pelo assunto. Não aprovo crueldade, contudo não sou ativista dos direitos dos animais. Até uso peles de animais. Foie gras já não consigo consumir, mas ainda assim não me peçam para me manifestar em prol dos gansos e dos patos. Prefiro aborrecer pessoas com assuntos para mim mais merecedores, como a vida alucinante a que obrigamos as crianças, a violência sexual, as diferenças salariais entre homens e mulheres, a participação feminina nas decisões políticas e empresariais, e outros que tais.
A ministra da Cultura esqueceu-se que não foi nomeada para mostrar como se considera mais civilizada do que grande parte dos seus governados? Ah, a surpresa. Manuel Alegre, um dos maiores produtores de disparates do país produziu mais um ror deles? Bocejo. E eis que o inefável primeiro ministro resolve lembrar-nos a sua natureza de contorcionista.
Curiosamente esta é uma característica que pode garantir a António Costa uma eficaz gestão de equilíbrios na geringonça, mas que lhe dificultará vir a conseguir obter maioria absoluta. Gera desconfiança nos eleitores. O seu governo tem feito um trabalho assinalável na manutenção de finanças públicas controladas. Reformas ficaram por fazer nesta legislatura, mas isso, da minha parte, até agradeço. Sou sempre mais defensora da inação dos políticos do que da hiperatividade. E, em boa verdade, reformas com o apoio do BE e do PCP é melhor que fiquem na gaveta. Que foi o local onde Costa (ou Mário Centeno) cuidou de as colocar. Já vivi governos piores.
O crescimento é pífio, comparado com os restantes países da UE, mas existe e é palpável e visível. Contestação social não há, e mediática também não, que o PCP e o BE tratam disso. E, ainda assim, Costa não tem maioria absoluta. Porquê? Porque os eleitores podem vê-lo como um político eficaz e habilidoso, mas não confiam nele.
O caso das touradas é paradigmático da capacidade de Costa se boicotar. Decide responder com jactância a Alegre, verberando as touradas mas garantindo que, magnânimo, não as proibirá. Sucede que anos antes, enquanto presidente da Câmara Municipal de Lisboa, condecorou um forcado prestes a retirar-se, assistiu a uma tourada no Campo Pequeno, aplaudiu, elogiou a ‘arte taurina’. ‘Arte’ que, além de ‘valentia’ tinha também – pasmem (ou riam, tal a ousadia contraditória) – ‘sensibilidade’.
Os eleitores percebem. Há uns anos Costa considerava ter ganhos eleitorais se aparecesse no Campo Pequeno e dissesse umas coisas que agradassem à população que assiste a touradas. Este ano Costa supõe que pode dar uns mimos ao parceiro de geringonça BE, distribuir uns rebuçados à ala esquerda do seu partido e garantir a devoção eterna do PAN. Se para tal contradisser o que afirmava como presidente da CML, paciência, António Costa é mesmo assim.
O que o primeiro ministro não concebe é que os eleitores valorizam a autenticidade. Ainda hoje, mesmo com os populismos. Ou sobretudo. Trump tem uma ideias políticas miseráveis (desde protecionismo e estímulos keynesianos à economia até à redução de apoios ao acesso a contracetivos pelas americanas), é um troca-tintas em muitos assuntos (é ver o que disse da Arábia Saudita em campanha e como a apoia agora) mas é autêntico no anti-intelectualismo, no basismo cultural, até na boçalidade e má educação. Os seus apoiantes deliram com esta faceta tão real de Trump.
Sócrates era também autêntico na brutalidade dos ataques. Prometia-se um ‘animal feroz’ e entregava. Sem concessões, era vaidoso, ostensivo e de gosto arrivista duvidoso. Muitos portugueses viveram uns bons anos enamorados da peça. Passos Coelho também era autêntico naquele estilo zombie de quem recomenda que não se dê presentes de Natal aos filhos, vá lá, aos muito pequenos podia ser, e mora em Massamá em jeito de statement político. Marcelo Rebelo de Sousa é genuíno no gosto de ser beijoqueiro e abraçar toda a gente e tirar selfies.
Já António Costa não transpira autenticidade. É habilidoso, sabe negociar, dá as facadas que tem de dar para alcançar os objetivos, mas é postiço. Não é caso único. Os partidos estão repletos de políticos cujos alfa e ómega são defender o que na hora lhes traz mais apoios internos ou votos externos. Costa é só mais um. Consegue desagradar a quem defende touradas e delira com as lides e ao mesmo tempo a quem torce o nariz a torturar animais.