Portugal já tem 75 mortos de Covid-19 por milhão, uma taxa pior que a média mundial atual de 22.7 mortos por milhão. Por outro lado, a taxa de letalidade (óbitos em casos confirmados) em Portugal é melhor que a média mundial, estando em 3.5% versus 6.9% no mundo. Em que ficamos perante dados epidemiológicos tão díspares retirados da mesma fonte (Worldometers)? Neste momento Portugal está nos países mais ou nos menos perigosos do mundo?

Na liderança política e da saúde, bem como no ar rarefeito das televisões de Lisboa sem vozes dissonantes ou pensantes, não havia dúvidas. Era contada e recontada uma estória de uma simplicidade comovente: o governo português era dos melhores do mundo em evitar mortes por Covid-19. Este conto alegre baseava-se na comparação simplista por valores absolutos dos casos confirmados e óbitos.

Comparada assim isoladamente, a situação aparentaria sempre ser menos perigosa que nos países maiores. No limite deste absurdo da comparação só por valores absolutos, até se chegássemos a ter a maioria da nossa população infectada e muitos milhares de óbitos, os números absolutos seriam mais baixos do que em países maiores, mesmo que esses tivessem uma muito menor taxa de mortalidade.

Além disso também se insistia na taxa de letalidade ser melhor em Portugal, o que, por enquanto, é correto, e que, bem, fazíamos muitos testes. A maioria das comparações insistia nos países em pior situação que Portugal, em vez de referir os melhores. Ou seja, não se discutia o reverso da medalha.

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Foi importante aparecer alguém da comunidade epidemiológica a revelar também aos portugueses os dados embaraçosos para o governo. Porquê? Porque prognósticos epidemiológicos certos só no final do jogo. Isto é, quando mais dados se acumularem, as curvas estiverem mais adiantadas em todos os países do mundo e se diluírem as diferenças entre países devido à diferença por número de testes. Aí sim poderemos sem incertezas tirar conclusões finais sobre a pandemia Covid-19. Era errado e prematuro andar já a declarar vitória de Portugal como “situação globalmente muito positiva”, escolhendo os dados mais favoráveis, mas ignorando os piores. Durante o “jogo” temos de olhar de frente todos os dados, mesmo os embaraçosos, para vencer e salvar vidas. Senão acontece-nos como à OMS que tirou conclusões precipitadas – baseadas só nos dados mais rosados — no início do “jogo”.

Só a 15 de Abril de 2020 é que que os Portugueses foram finalmente informados através do artigo “Visão Factual Epidemiológica”, no Observador, que em epidemiologia, especialmente em óbitos e nesta altura, a análise comparativa entre países mais fiável (ou menos incerta) é per capita. Ao fazer essa análise foi fácil de verificar, usando os dados anteriores mas fazendo conversão per capita, que a nossas mortes por milhão estavam muito longe de ser as melhores do mundo. Devido ao impacto desse artigo, só a 19 de abril milhões de portugueses puderam finalmente saber na TV que Portugal era afinal o 9º mais perigoso país da UE; longe de ser dos menos perigosos como sugeriam antes. No entanto há aqueles que insistem ainda em especular sobre o efeito do número de testes em dados per capita, ignorando que as mortes por milhão são o facto epidemiológico comparativo entre países com o grau de certeza maior neste momento, porque são o menos dependente do número de testes. Essas mortes já subiram mais de 50% desde o artigo na semana passada, de cerca de 50 para 75 mortos por milhão em Portugal.

Aqui em Oxford o primeiro teste de vacina num humano começará amanhã, dia 23 de Abril; em Seattle começou em Março. Agora pode levar meses a anos a selecionar uma que funcione, dependendo da taxa de sucesso deste desenvolvimento farmacêutico

Há aqui muitas nuances epidemiológicas que este novo artigo tenta explicar mais profundamente agora, mas no primeiro já chamámos a atenção para o problema. Não pode haver ocultação nem negação do facto epidemiológico das mortes por milhão, alarmante sem dúvida, mas real e que pode ser letal, especialmente numa segunda onda. Devido às medidas não farmacêuticas de combate ao vírus tomadas por todo o mundo, como o isolamento ou distância social, a primeira onda da pandemia Covid-19, na maioria dos países do mundo, poderá não ser catastrófica. Há “comboios” (países) que já “descarrilaram” imprevisível e dramaticamente na curva epidemiológica com muitos óbitos. Contudo também há outros que parecem controlados dentro de uma curva previsível e dominada, mas que podem descarrilar ainda se ignorarem ou ocultarem dados sérios.

Ainda não há medicamentos comprovados nos grandes ensaios clínicos que se estão já a realizar. São por enquanto medicamentos incertos pois o alvo inicial eram outros vírus ou doenças. Muito menos existem vacinas pois essas são novas e específicas, mas ainda agora estão no início de pequenos ensaios clínicos. Aqui em Oxford o primeiro teste de vacina num humano começará amanhã, dia 23 de Abril; em Seattle começou em Março. Agora pode levar meses a anos a selecionar uma que funcione, dependendo da taxa de sucesso deste desenvolvimento farmacêutico, para já difícil de prever porque sem precedentes específicos.

Por isso, enquanto tais medidas farmacêuticas não estiverem disponíveis, corremos o risco de uma segunda onda muito mais mortífera que a primeira, como aconteceu na gripe espanhola de 1918. Há um debate a ser feito sobre como deve ser o levantamento das medidas, provavelmente deve ser gradual (“lume brando”) e tendo em conta a imunidade de grupo versus esforços do SNS, mas para decidir e salvar vidas precisamos de tomar em conta todos os dados epidemiológicos, incluindo os desagradáveis.

A bem da saúde pública, os portugueses precisavam saber a verdade sobre as mortes per capita comparativamente com os outros países. Não deviam ter sido induzidos numa falsa sensação de maior segurança prematuramente ou, mesmo agora, serem iludidos que o maior número de testes em Portugal põe em causa a importância das mortes por milhão. Devem continuar a ter tantos ou mais cuidados como os outros povos porque, per capita, e pelo menos por enquanto, estão a morrer mais que na grande maioria dos outros países do mundo. Isso pode mudar há medida que outros países vão sendo mais afectados e/ou melhor medidos e contados, mas é a realidade atual.

Esse facto epidemiológico inegável à data de hoje era o ponto básico do artigo que teve mais de uma centena de milhar de partilhas em escassos dias. Verificou-se assim quão grande era a sede dos portugueses pela verdade epidemiológica ligada à sua segurança, mesmo que ela doesse a poderosos e fosse contra a corrente da declaração prematura de vitória pelas autoridades, antes de uma possível segunda onda.

A bem da saúde pública, os portugueses precisavam saber a verdade sobre as mortes per capita comparativamente com os outros países. Não deviam ter sido induzidos numa falsa sensação de maior segurança prematuramente ou, mesmo agora, serem iludidos que o maior número de testes em Portugal põe em causa a importância das mortes por milhão.

Apareceram então várias sumidades que tinham contribuído para ocultar esta verdade científica aos portugueses. Tinham estado em silêncio reverente perante o enorme erro metodológico da comparação entre países só por valores absolutos e não tinham feito um reparo tímido que fosse à gravíssima ocultação da mortalidade per capita. Tornaram-se finalmente afoitos para escrutinar o mínimo detalhe metodológico da análise per capita do meu artigo, com limitações sem dúvida, especialmente num artigo de opinião escrito para leigos, mas ainda assim mais útil para a saúde pública e intelectualmente honesta que a grosseira narrativa anterior dos números absolutos e do enfoque na boa taxa de letalidade que tinham deixado passar inquestionada. Percebo que é sempre fácil para tíbios atirarem achas para a fogueira da inquisição dos que ousamos dizer verdades científicas importantes, mas não posso deixar de aqui refutar procedimentos inquisitoriais.

Sobre reparos pelo estilo, insultos gratuitos e orquestradas difamações falsas sobre o meu currículo, compreendo empaticamente que num país escaldado por impostores incompetentes ligados à política, é difícil acreditar que este autor tenha tantos graus académicos. Faço mea culpa por alardear graus todos verdadeiros, mas sem a devida humildade. Aliás, é por dizer verdades frontais que aparecem críticas.

Sobre as críticas metodológicas às verdades epidemiológicas per capita finalmente divulgadas aos portugueses no meu artigo de 15 de abril, não encontrei uma da ordem da gravidade do erro epidemiológico grosseiro que vinha a ser feito até este artigo o ter corrigido perante a opinião pública: comparar óbitos entre países só em valores absolutos, sem ter em conta a dimensão. Alguns foram buscar minúsculos principados para dizer que não estávamos no Top 10, mas “só” Top 20 dos países com mais mortes por milhão neste momento. Ora mesmo assim como há perto de 200 países no mundo estávamos, e indubitavelmente estamos, nos 10% com mais mortes per capita (ver worldometer). Comparar só com os piores países esconde, mas não eleva os padrões da governação. Se antes da segunda onda insistirmos, erradamente, que somos dos com menos mortes e nada corrigirmos, vamos perder vidas desnecessariamente. Na região da Madeira, bem, foram mais rápidos na imposição de quarentena nos aeroportos e isso teve resultados. Felizmente e por agora zero mortos.

No limite nenhum dado comparado entre países é homogéneo, especialmente na primeira parte da primeira onda mundial de uma pandemia, mas isso não pode justificar ignorar a diferença abissal de dimensão entre os países, quer nas mortes quer nos casos confirmados.

O número de mortes absoluto numa fase muito inicial de uma pandemia até pode ser usado para comparações, porque aí as mortes são raras e dependem mais da sorte ou azar na exposição inicial do que da gestão da crise na comunidade. Os dados têm de ser apresentados também per capita para haver visão abrangente. Quando há centenas de mortos, a comparação principal entre países é per capita. Para providenciar uma visão abrangente, apresentei quer o número de óbitos, quer de caso confirmados per capita, porque são disponibilizados só em valores absolutos pela DGS. Certamente não é por serem convertidos para per capita que passam logo a não ser fiáveis. Aliás, seria útil que a DGS divulgasse per capita não só os números da nação, como fiz no artigo, mas de cada concelho, para se saber a real dimensão do problema em diferentes concelhos com mais ou menos habitantes, para assim os recursos escassos poderem ser alocados da melhor forma e prioritariamente.

Os óbitos têm sempre um maior grau de certeza que os casos confirmados, tal como também deveria ser óbvio para os críticos que dados per capita são mais comparáveis que absolutos. Claro que o número de testes que um país consegue fazer influencia os casos confirmados por esse teste: se 1) só testa os casos mais graves, se 2) testa todos os sintomáticos ou se 3) o ideal, testa uma fatia alargada e representativa da população assintomática. Por essa razão, os casos confirmados variam entre os países mais que as mortes. Há maior incerteza claro nos casos informados, mas mesmo a mais certa contagem das mortes também tem diferenças pois o método não é idêntico entre países e também depende ligeiramente dos testes ou doutros factores. Por exemplo, o Reino Unido nas mortes não está a incluir os óbitos nos lares. No limite nenhum dado comparado entre países é homogéneo, especialmente na primeira parte da primeira onda mundial de uma pandemia, mas isso não pode justificar ignorar a diferença abissal de dimensão entre os países, quer nas mortes quer nos casos confirmados.

Paradoxalmente, vários insistiram que o artigo deveria ter incluído a taxa de letalidade (óbitos dentro dos casos confirmados) pois esta é, neste momento, bastante favorável para Portugal nos 3.5%, enquanto a média mundial está pior, por enquanto nos 6.9%. Ora a letalidade, neste momento, tem muitas incerteza e depende de mais factores que os casos confirmados per capita que tanto criticaram. Depende, por exemplo, da estrutura etária de um país. Além disso tem a mesma fonte adicional de incerteza que são o maior número de testes que Portugal faz. Da mesma maneira que quanto mais um país testa, mais casos são confirmados, também quanto mais casos confirmados há mais se diluem os óbitos e melhor parece ser a taxa de letalidade desse país.

Não há curvas de epidemiologia completamente previsíveis neste início. Há muitos factores como a densidade populacional, implementação de medidas e outros inesperados que podem alterar a curva a qualquer momento.

Não referi a taxa de letalidade por isso e por ser menos fiável nesta altura em que o número de testes e outros factores a influenciam tanto, nem haver justificação biológica ou sistémica plausível para os portugueses morrerem menos que os outros quando infectados pelo SARS-Cov-2. Até porque, em média, os portugueses idosos têm mais co-morbilidades de risco que em vários outros países europeus mais afectados. Não referi também a taxa de letalidade porque o objetivo do artigo de 15 de Abril era alertar os portugueses para os dados desagradáveis que lhes tinham sido escondidos, não os agradáveis porque desses já se falava muito e quase exclusivamente.

No final do “jogo”, quando e se outros países testarem tanto como nós provavelmente vamos ter uma letalidade não muito longe média europeia, mas não melhor que os outros. Da mesma maneira em termos da evolução de mortos por milhão, não excluo que a diferença de Portugal com a curva dos EUA poderá vir ainda ser bem pior para eles do que as 30% mais mortes per capita que eles tinham na semana passada. Desde aí, o número de mortes dos EUA por milhão aumentou de 71.4 para 132 (aumento de 84%). Em Portugal aumentou menos, de 49 para 75 (aumento de 53%). Até o Brasil, mesmo como corretamente o artigo fez comparando em número de dias idêntico após a primeira morte (não a mesma data no calendário), a qualquer momento pode “descarrilar” da curva. De menos mortes por milhão para pior. O imprevisível também nos pode acontecer. Não há curvas de epidemiologia completamente previsíveis neste início. Há muitos factores como a densidade populacional, implementação de medidas e outros inesperados que podem alterar a curva a qualquer momento. Na realidade a incerteza é tanta que mesmo os países que agora parecem piores podem, devido a uma possível imunidade de grupo potenciada assim mais cedo, virem a inverter a situação na segunda onda.

Tal como o valor da taxa de letalidade em Portugal e mundial não é provavelmente agora o que vai ser no final; também, não acredito, obviamente na manutenção tão baixa da média mundial em apenas 22.7 mortos por milhão. Isso é igualmente artificial e porque faltam muitos dados e contagens. A média mundial de mortos por milhão vai aumentar quando a onda chegar a mais países e/ou mais mortes forem contadas em vez de escondidas nalguns países. Ambos estes valores epidemiológicos vão mudar há medida que os “comboios” (metáfora para países) andarem mais adiante nas curvas epidemiológicas.

A hipótese mais provável é que Portugal vai ficar numa posição mediana. No entanto, enfatizo, prognósticos certos só no final do jogo. Por enquanto temos de olhar a todos os dados incluindo os embaraçosos para o governo até para que, processando todos os dados com transparência, aumentar as possibilidades de realmente ficarmos entre os melhores. Por enquanto, estamos mesmo no “segundo pelotão” dos com mais mortes por milhão.

Concluindo, era e é errado afirmar neste momento à população que estamos entre os mais bem protegidos do mundo, só porque a dimensão do país é pequena logo os números absolutos de mortes são baixos, fazemos muitos testes e temos baixa letalidade. O “comboio” não saiu da estação ainda há muito tempo e as curvas são traiçoeiras, podem mudar repentinamente. Não podem haver tantas certezas já sobre um rosado destino final, comparativamente com os outros países europeus e do mundo.

Fontes (consultadas às 21 horas de 21 de Abril de 2020):

1 – Worldometers https://www.worldometers.info/coronavirus/
2 – DGS: https://covid19.min-saude.pt/ponto-de-situacao-atual-em-portugal/
3 — 91-DIVOC (usando Johns Hopkins CCSE). Consultada: https://91-divoc.com/pages/covid-visualization/

Pedro Caetano é MPH (Harvard), PgDip (Oxford), PC (London), MS (Michigan), PharmD (Ohio State), MBA (ESSEC), MBA (Mannheim), PhD (Michigan), AA (Cincinnati), Lic. (Lisboa); Ex-Professor de Farmacologia e Epidemiologia na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Atual Director Global da Industria Farmacêutica baseado no condado de Oxford, Reino Unido.