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Uma doença duplamente silenciosa

O aneurisma da aorta abdominal (AAA) é uma deformação da principal artéria do nosso corpo, cujo diâmetro vai alargando ao ponto de as suas paredes ficarem tão frágeis que podem romper.

Esta patologia tem características que a tornam extremamente perigosa:

  • É silenciosa em vida, ou seja, normalmente não manifesta sintomas que levem a que uma pessoa procure cuidados médicos;
  • Em caso de rotura, a probabilidade de sobrevivência é muito baixa;
  • É silenciosa também na morte, ou seja, dada a idade em que normalmente ocorre e o facto de poder não originar autópsia, facilmente passa por um enfarte. Este facto contribui para que tenhamos uma consciência social muito baixa para esta doença. Ouvimos falar em morte por vários tipos de cancro, por enfarte ou AVC, mas é raro ouvirmos falar em morte após rotura de um AAA.

Apesar disso, existem fatores que facilitam o seu combate:

  • A cirurgia para tratamento do aneurisma é relativamente simples e hoje em dia já é de baixo risco;
  • É facilmente detetável através de um exame acessível, não intrusivo e pouco dispendioso (um eco-doppler aórtico ou uma ecografia abdominal);
  • Uma vez detetado, existe um protocolo bem estabelecido para monitorização e tratamento do aneurisma. Nem todos rompem e nem todos necessitam de cirurgia.

Outras características relevantes do AAA:

  • A população de risco são os homens com mais de 65 anos, principalmente fumadores ou ex-fumadores;
  • Em dois estudos já efetuados em Portugal encontraram-se taxas de prevalência relevantes em homens com mais de 65 anos: 2,1% e 2,4%. Ou seja, por cada 42 a 48 homens rastreados daquela faixa etária é provável detetar-se um AAA. Tendo em conta a nossa população atual, cerca de 22 a 25 mil homens poderão ter este aneurisma;
  • A existência de historial familiar é muito relevante. Num estudo efetuado na Suécia, foi encontrada uma prevalência 10 vezes superior em irmãos homens (ainda vivos) de doentes com AAA diagnosticada (17%) face à prevalência média da população masculina sueca com mais de 65 anos (1,7%). Ou seja, por cada 6 homens irmãos de doentes com AAA diagnosticada é provável detetar um AAA.

Por este motivo, a Sociedade Europeia de Cirurgia Vascular, nas suas guidelines, recomenda formalmente que seja feito o rastreio do AAA:

  • em todos os homens logo que façam 65 anos;
  • em todos os homens e mulheres, aos 50 anos e em intervalos de 10 anos, que sejam familiares em primeiro grau de pacientes a quem
  • tenha sido diagnosticado um AAA.

Uma morte evitável

Há 9 anos, soube-o com mais detalhe agora, quando foi efetuar um exame com outra finalidade, foi detetado um AAA no meu tio, irmão do meu pai. É assim que grande parte destes aneurismas são detetados em Portugal: acidentalmente, já que no nosso país não se faz o rastreio de forma generalizada. Durante 3 anos esteve a ser monitorizado anualmente, até que em 2016 foi tomada a decisão de operar face à evolução e dimensão do aneurisma. Foi operado no ano seguinte e hoje continua a fazer uma vida normal.

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Tendo em conta o que já disse atrás, seria de esperar que tivesse sido dado um alerta ao meu tio para que os irmãos fossem rastreados. Infelizmente, nem os dois médicos especialistas em Angiologia e Cirurgia Vascular de dois hospitais públicos diferentes da área de Lisboa que o seguiram, nem a sua médica de família deram qualquer alerta.

No verão do ano passado o meu pai, com 76 anos e a gozar de boa saúde, faleceu repentinamente, ao que tudo indica após a rotura de um AAA que nunca foi rastreado e, como tal, diagnosticado. Apesar de ter recebido assistência médica de emergência prontamente, o meu pai já não saiu de casa com vida.

Segundo o médico especialista que operou o meu tio, com quem falei, apesar de perfeitamente ciente do fator hereditário do AAA, entendeu que o seu papel se limitava ao paciente que estava a tratar, cabendo ao médico do meu pai fazer essa deteção. Num país em que não é promovido um rastreio generalizado do AAA e dadas as características desta patologia que já mencionei, tenho muita dificuldade em compreender esta posição.

De notar que:

  • em outras duas situações de que entretanto tive conhecimento, noutras famílias, com diagnóstico de um AAA, também não ocorreu qualquer alerta para que fosse feito um rastreio em familiares;
  • alguns médicos de Medicina Geral com quem falei não tinham presente o fator hereditariedade no AAA.

Um caso pontual ou um problema sistemático?

Não podendo tirar conclusões com base em 3 casos, fui procurar por estatísticas que comparassem Portugal com outros países e encontrei os trabalhos de um médico português, também especialista em Angiologia e Cirurgia Vascular, que dedicou o seu doutoramento ao estudo do AAA. Uma das análises que fez, que foi publicada num dos mais relevantes jornais mundiais da área, foi comparar o número de cirurgia eletivas (realizadas preventivamente, sempre que o aneurisma apresenta um diâmetro igual ou superior ao definido em protocolo) por cem mil habitantes, onde Portugal aparece em penúltimo lugar dos 14 países analisados.

Não apresentando Portugal uma prevalência do AAA na população inferior à dos outros países (antes pelo contrário), uma das razões que pode explicar esta diferença está no facto de não sermos tão eficazes a detetar o AAA como os outros. Em países onde é promovido o rastreio em todos os homens logo que chegam aos 65 anos (Reino Unido e Suécia), o indicador é superior, demonstrando como esta política pode fazer a diferença. No entanto, mesmo quando se compara Portugal com outros países que também não promovem o rastreio de forma sistemática (ex: Espanha), continua a haver diferenças significativas.

Noutro estudo que efetuou, ao analisar uma amostra de ecografias abdominais realizadas em mais do que um hospital num determinado período, o mesmo médico identificou alguns motivos que podem explicar esta diferença: o facto do aneurisma, apesar de presente, nem sempre ser detetado pelo médico que realiza o exame e o facto de uma parte dos doentes em que o aneurisma é detetado acabar por não ser acompanhado no âmbito de um programa de monitorização do AAA.

Questiono se não existirá um terceiro fator, para o qual não tenho evidências: o não estarmos a promover eficazmente o rastreio em familiares em primeiro grau, uma vez detetado um aneurisma.

Apelos e alertas

Contrariamente ao instituído pelas boas práticas, em Portugal o combate ao AAA é feito de forma passiva, quando as características desta patologia exigem que se procure proactivamente por ela. Para piorar ainda mais, esse combate não é eficaz em todo o seu potencial por falhar em alguns momentos chave, como se explicou atrás.

Por isso é crítico que o SNS promova o rastreio generalizado do AAA. Para ter um termo de comparação, o exame tem um custo similar ao de uma vacina (só o injetável) contra a COVID e com certeza um custo muito inferior a um PCR.

Enquanto tal não acontece, recomendo vivamente:

  • Apesar do eco-doppler aórtico ainda não ser um exame possível de prescrever pelo SNS, caso tenha essa possibilidade e for um homem com 65 ou mais anos, procure realizar o rastreio do AAA através de uma ecografia abdominal simples, com a solicitação para medir a artéria aorta nas observações do pedido de exame. Incentive os seus familiares ou amigos com as mesmas condições a fazê-lo;
  • Caso conheça alguém a quem tenha sido diagnosticado um AAA, garanta que os familiares em primeiro grau efetuam um rastreio aos 50 anos.

Infelizmente, o desconhecimento geral sobre o AAA contribui também para que haja menos pressão para a mudança. Este artigo procura dar um contributo para contrariar esta realidade.

Para partilha de ideias ou de situações similares: info@stopAAA.pt..