Na passada semana, o governo britânico anunciou que, pela primeira vez, a prestação de Cuidados Paliativos (CP) seria uma obrigação explícita e legal do NHS, através das comissões de saúde por toda a Inglaterra. Tratou-se de pôr em pé de igualdade o direito ao acesso a estes cuidados de saúde, face a outros cuidados já garantidos, como os pré-natais, a saúde oral ou o acesso a cirurgias. Foi um avanço significativo na realidade britânica, país pioneiro dos CP mas em que, apesar do esforço de tantos nas últimas dezenas de anos, um número relevante de cidadãos continua a não ter acesso a estes cuidados de saúde. De acordo com instituições locais representativas dos doentes – com demência, com cancro, com doenças neuro-degenerativas, entre outros – que saudaram vivamente esta medida, cerca de 215000 pessoas a cada ano não acedem a estes cuidados em Inglaterra (uma a duas, em cada quatro), o que é uma realidade altamente preocupante.

Simultaneamente, e pela 12ª vez em 25 anos, o parlamento britânico rejeitou uma emenda que imporia a legalização do suicídio assistido ao governo no espaço de um ano. Estranhamente, por cá, não ouvimos qualquer noticia sobre a relevância deste facto, ocorrido num país moderno da Europa e que há muito reflecte sobre a problemática da intervenção no sofrimento no final de vida. Ambas as medidas reforçam a convicção da importância de tornar acessíveis os tratamentos para os que têm sofrimento decorrente de doenças graves e avançadas, e da necessidade efectiva de incluir nos serviços de saúde modernos este tipo de respostas.

Quero com isto voltar a falar da situação dos CP no nosso país, em que fomos pioneiros a criar leis – como a Lei de bases dos CP, aprovada em 2012 no nosso parlamento, e a lei dos Direitos das pessoas em fim de vida, em 2018 – que estabelecem a obrigatoriedade do acesso a estes cuidados de saúde para os que deles carecem. Ora se fomos originais e pioneiros nas ferramentas que enquadram legalmente o acesso a estes cuidados de saúde, o certo é que na prática estamos muito distantes disso, e ainda mais atrasados do que aquilo que apresentámos para a realidade britânica. No nosso país e no que aos CP diz respeito, a lei quase parece letra-morta, e nestes últimos anos isso agravou-se ainda mais, com evidente desinvestimento político nestes serviços.

Os casos são conhecidos de muitos, em todo o país, e gritantes. Cito o exemplo bem recente da familiar de uma colega de profissão, a viver na zona centro do país e numa cidade, mais um caso dos muitos que conheço e que me chocou, e que me continua a provocar uma profunda vergonha alheia. Sem entrar em detalhes clínicos ou pessoais, dizer que tudo falhou na abordagem da situação de terminalidade da idosa em causa: o não saber reconhecer por parte de profissionais de saúde do SNS que a demência avançada cumpre critérios de paliação (não, não são só os doentes oncológicos!!), o não saber o que são cuidados adequados a estas situações clínicas tão frequentes, o não saber que num serviço de agudos existe a obrigação de sinalizar em tempo útil estes doentes para a Rede de CP e que existe por parte das equipas hospitalares e comunitárias de CP a obrigação de responder tratando o doente em tempo útil. E desconhecer ainda que o doente não tem que andar, ele próprio, frágil e doente, a ser empurrado entre instituições, e para fora do hospital quando não existe outro recurso de saúde que lhe dê resposta. Trágico, terrível, para os doentes e famílias, histórias (muitas!!) de um país que proclama a modernidade e o direito à saúde, mas que trata dos frágeis e terminais como coisa pouca, como doentes de terceira. E estes casos são aos milhares, pois dados do Observatório para os CP confirmam que praticamente um em cada três portugueses que necessita não tem acesso aos CP. Isto são factos. Será que não incomodam os leitores, os decisores? Será que o sofrimento destas pessoas não é razão mais do que suficiente para priorizar respostas que ajudem a tratar, a viver com Dignidade até ao fim, tantos milhares de concidadãos nossos?

A pandemia pôs a nu a forma como morremos, a forma como a realidade do final de vida, se não devidamente apoiada, pode ter impacto nas pessoas, nas famílias, nos profissionais, nos serviços de saúde. Muitos profissionais das equipas de CP foram afastados das suas funções, e se os recursos humanos e outros já eram escassos, o panorama do acesso, da falta de resposta em tempo útil, das listas de espera, ainda se agravou mais.

Agora que vamos ter novo governo – ao dia em que escrevo, anuncia-se a mesma ministra da saúde dos últimos anos –, que se prepara este “novo-velho-governo” para fazer em matéria de apoio aos doentes em fim de vida e aos seus cuidadores? Mais proclamações completamente distantes da realidade e do seu sofrimento? Que prioridade irá ser escolhida: a execução da morte a pedido (que não se trata de um cuidado de saúde) no SNS ou a difícil tarefa de garantir a prestação alargada de cuidados de saúde destinados aos que não se curam, acessíveis em tempo útil e por parte de equipas devidamente qualificadas, em todo o território nacional?

Em matéria de CP, o actual estado das coisas é inqualificável. No nosso país tantas vezes se deixam coisas por fazer porque são difíceis. Difícil nunca foi sinónimo de impossível, muito menos de errado. Em matéria de cuidados paliativos, de dignidade dos nossos concidadãos, está na hora de fazer o difícil, o certo e o adequado.

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