O conceito de cultura não é “pacífico”. São muitos os significados que lhe têm sido atribuídos, como se nada houvesse de “seu”, uma herança a respeitar e amar. Este estado de coisas leva a grandes confusões e ao abandono da possibilidade de uma sociedade humana, com alma.

O conceito de “cultura” é complexo, tendo sempre interessado o pensamento e a filosofia. Do Oriente ao Ocidente assistiu-se ao emergir de identidades que apostaram num rosto entendido como base de construção de uma boa sociedade. Diferentes identidades criaram tradições que se desenvolveram na História. Fará sentido falar de primazia de uma cultura em relação às outras? A impossibilidade de se prescindir de um ponto de vista leva-me a entender a cultura a partir do lugar onde me encontro, uma europeia do século XXI, quando o discurso woke ganha terreno. A sua visão sobre o tecido das narrativas identitárias vai ao ponto de me obrigar a entender o sentido do conceito de cultura.

O conceito de cultura distingue-se do conceito de natureza, significando aquilo que a natureza não sabe. O homem, ser cultural, sabe o que é a natureza, ao passo que natureza não sabe o que é o homem. Lembramos o pensamento de Pascal em afirmações acutilantes a este respeito, como a de que o homem é como um grão de areia, ínfimo em comparação com o universo, mas é um ponto que tem consciência, que sabe o que é. Na Carta Apostólica Grandeza e Miséria do Homem, a marcar os 400 anos do nascimento do filósofo e teólogo francês, o papa Francisco elogia a sua forma admirável de falar da “condição humana”, gritando a questão, antiga e sempre nova, que ressoa no ânimo humano: Que é o homem para Te lembrares dele, o filho do homem para com ele Te preocupares? – gravada no coração de cada ser humano, em todo o tempo e lugar, de qualquer civilização e língua, independentemente da sua religião.

Mas se todo o homem é cultural nem todo o homem se entende da mesma forma. Pascal mais uma vez : Que é um homem na natureza? Um nada comparado com o infinito, um tudo comparado com o nada. Aos conceitos de natureza e de cultura junta-se assim o de infinito. A tradição cristã é caso único na História por se posicionar num horizonte de transcendência próprio de um Deus que cria o universo a partir do nada. Para a tradição judaico-cristã o mundo existe mas poderia não ter existido, é contingente. Por outras palavras, o mundo não existe por uma necessidade num eterno retorno, mas foi querido, amado e criado, a partir desse amor, e mais nada.

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Este Deus criador é também o Deus salvador. A braços com o mal, o homem não é entregue ao nada mas é salvo. Ao enviar o Seu Filho, que morre numa cruz e ressuscita, Deus não destina o homem a um ser para a morte mas oferece-lhe o caminho, a eternidade. O Verbo fez-se Carne (Prólogo do Evangelho de S.João) quer dizer que a Beleza faz-se carne, a Justiça faz-se carne, a verdade faz-se carne, o Bem faz-se carne. Tudo o que é beleza, justiça, bem e verdade tem a consistência do Logos encarnado. A cultura é o lugar dessa encarnação, brote ela onde brotar. Não é coutada de ninguém.

O discurso (pós Vaticano II) que proclama a necessidade de a Igreja fazer diálogo com o mundo da cultura – como se houvesse dois mundos, por um lado a Igreja e, do outro lado, o mundo da cultura e, entre eles, a tal ponte a ser feita – está assente num inadequado conceito de cultura que ignora o do Cristianismo.

O Cristianismo tem da cultura um conceito que não a limita a quatro paredes, mas que a entende como universal. Universal que se expressa, porém, em diferentes rostos. Que o Logos, o Verbo, se fez homem, é a qualidade que investe o fazer de todos os homens como um fazer humano. Toda a arte é assim profética, anuncia o Sentido. Cada artista é um grito que a todos ilumina.

Cada homem instaura uma cultura pessoal, cada um é protagonista de um fazer que o vai moldando e moldando a sociedade. Foi Marx que destacou o valor do trabalho como construtor do homem, o único ser que, ao contrário da natureza, não está completo mas que se deve fazer ou construir. O homem não é um ser completo mas tem que se fazer na e pela ação. Na mesma linha vem o “a existência precede a essência”, de Sartre, ou as narrativas queer, que assim devem mais a Marx do que se pensa.

Este posicionamento existencialista tem pés de barro. Com efeito não é preciso muito para se admitir que é impossível construir a partir do nada. Defender que é necessário o trabalho da liberdade, é admitir que, pelo menos, há um dado, a liberdade. E admitir uma natureza dada não exclui mas antes indica a necessidade de um trabalho pessoal. Neste ponto a narrativa mais razoável – porque realista ao admitir que há pelo menos um dado – não colide com a exigência de que o fazer tenha uma marca pessoal, indeterminada (o caminho faz-se no caminhar). Mais, é ela que ao afirmar uma natureza humana – ser pessoal, inteligente, livre e amorosa – dá razão da defesa intransigente de protagonismo. Sem esta razão todas as narrativas serão voluntaristas, isto é cegas. Sim, porque é que se defende a pés juntos a necessidade de um trabalho na primeira pessoa, de sermos protagonistas, de não nos alienarmos em qualquer esquema ao serviço de poderes instituídos? É porque sim?

Olhemos para o tal dado sobre o qual se constrói a nossa vida. Foi o que Marx não fez, ele que foi mais um teólogo que um economista, quis sê-lo sem Deus. Não basta a crítica ao capitalismo materialista. Claro que não basta conhecer o mundo, que é preciso transformá-lo. Mas a que preço? Santo Agostinho definiu o homem como a grande natureza, não prescindindo da evidência que o homem é um ser “inacabado” mas cujo fazer tem no ser os seus alicerces. E esse dado é o ser criado à imagem de Deus. O Ocidente porém, embalado na urgência da praxis, afunda-se numa cultura sem rosto humano. Em boa hora Max Scheler (A Posição do Homem no Cosmos), com a paternidade de Husserl, nos devolve a metafísica, reconhecendo o homem como um ser espiritual. Esquecer a pergunta essencial sobre o homem, esquecer a sua singular posição no cosmos é apostar numa construção de identidades cegas, insensível à aposta da Noite de Fogo (Pascal). Uma aposta que tem por certo os seus custos, mas de que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma?