Nesta semana, foi notícia a denúncia, por parte da directora técnica de uma instituição que apoia imigrantes em situação de vulnerabilidade, uma agressão muito grave a uma criança nepalesa, acompanhada por insultos racistas, que terá sido filmada e divulgada num grupo de whatsapp de crianças. Os pais da criança não terão recorrido aos serviços de saúde por temerem represálias. E, em consequência do que aconteceu, o aluno terá sido transferido de escola.

Este episódio só a destempo mereceu uma denúncia junto da Procuradoria da República, que abriu um inquérito. Dos seis alunos envolvidos, um terá sido suspenso. Por mais que a escola da Amadora, onde tudo terá acontecido, afirme desconhecer o sucedido. E a responsável da Obra Católica Portuguesa das Migrações ter dito que não haverá motivos para duvidar que a agressão tenha existido.

Já a associação de nepaleses em Portugal afirma que este tipo de episódios tem vindo a aumentar. E a ministra da administração interna recordou que a PSP terá reforçado, de modo próprio, o policiamento junto das escolas, de forma a prevenir situações idênticas.

Em primeiro lugar, estranha-se que seja tão complexo que se esclareça – de forma urgente, clara e inequívoca – uma situação tão grave. Sobretudo quando se começou a questionar a veracidade da história. E quando a escola que esta criança frequentaria se apressou a afirmar que desconhecia o caso. Afinal, aconteceu ou não aconteceu? E será isso tão atentatório da privacidade desta criança que se esclareça, unicamente, quando esta agressão foi declarada como um “linchamento”, de forma a que se tomem medidas que a protejam de forma firme? E será, ainda, tão exorbitante que escola e ministério público se alinhem no esclarecimento claro de um acto de tamanha gravidade? Não há alguma leveza excessiva entre afirmar-se que o episódio foi referido “de memória” e, depois, pareça descer sobre ele um manto silencioso de alguma opacidade? E deverá ser a PSP a dar garantias de segurança diante de outras circunstâncias de bullying que aconteçam dentro das escolas? E, já agora, como pode uma escola desconhecer um acto destes, se ele terá merecido uma suspensão (e porquê só uma?), a não ser que não tenha, porventura, acontecido? E como entender que o melhor que nos precisem sobre este caso é que a mãe da criança, sendo imigrante, afinal, não seria nepalesa? E não devia um caso destes ter sido esmiuçado pela imprensa, de fio a pavio, para descanso de todos nós?

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Mas deixemos este episódio e foquemo-nos no bullying.

Não, não há uma epidemia de episódios de bullying. E, muito menos, movidos por ódio racial.

Não, muitos dos episódios alegadamente de bullying não correspondem a violência, física ou psicológica, em meio escolar. Mas, sim, os episódios de bullying estão a ser mais frequentes e mais precoces. Muitos, começam no jardim de infância!

Não, na maior parte das vezes, não se traduzem em agressões físicas que deixem escoriações ou nódoas negras. Mas em menos actos de maltrato físico e em muito mais episódios de exclusão, intimidação, manipulação, humilhação e ameaças de represálias de um pequeno grupo de crianças (duas ou três) sobre um colega, com a conivência um bocadinho assutada de toda a turma.

Sim, estes episódios são transversais aos rapazes e às raparigas, e são mais frequentes até ao 9⁰ ano.

Sim, na maioria das vezes, elegem o peso duma criança, a sua timidez ou inibição, a forma como se veste ou as marcas de roupa, que não ostenta, a cor da sua pele ou o facto de não dominar um idioma, a sua aparente orientação sexual ou as suas carências financeiras como aspectos de achincalhamento.

Sim, estes episódios estendem-se, facilmente, do recreio da escola à sala de aula e às redes sociais. E, regra geral, prolongam-se por mais do que um ano lectivo.

Sim, as crianças que vitimam acabam por ter esses mesmos comportamentos anos a fio sem que ninguém as proteja dos seus actos, devidamente.

Sim, muitíssimas destas situações de bullying, são protagonizadas por crianças com boas notas e não tanto por alunos com carências sociais ou com “necessidades educativas especiais”.

Não, estas situações não são, de todo, exclusivas das escolas públicas.

Sim, o bullying também existe, muitas vezes, nas escolas onde convivem o ensino em língua estrangeira e em português. E acontecem de forma “endémica”, ano após ano. Sobretudo com movimentos de exclusão das crianças que frequentam o ensino em português.

Sim, regra geral, dada a exuberância de muitas destas situações, só por défices de atenção as escolas não reparam nelas.

E, sim, a forma como as escolas gerem o bullying é, habitualmente, equívoca. Inacreditavelmente morosa. Muitas vezes, medrosa. Confundindo quem é vítima com que vitima. E de forma demasiado negligente, quando se trata de mobilizar medidas rápidas e eficazes de protecção das vítimas (que, na maioria dos casos, para se sentirem seguras, mudam de escola).

Sim, os pais de muitas crianças que vitimam colegas são, muitas vezes, motivo de enorme receio por parte das escolas, tal é a forma arrogante ou prepotente (ou, no outro extremo, demissionária) como reagem quando são interpelados por elas.

Não, os pais das crianças que são vítimas encontram, habitualmente, mais expedientes defensivos das escolas em relação às falhas de protecção que possam ter tido do que atitudes serenas (mas expeditas) que os deixem sossegados e seguros em relação às medidas de protecção que os seus filhos virão a merecer.

Não, não há crianças que vitimem, de forma regular, os seus colegas sem que tenham tido muitos maus exemplos de maldade (aberta ou “liofilizada”) ao seu dispor, todos os dias, nas suas casas. Independentemente da “classe social” a que pertençam. Ou dos princípios que as suas famílias perfilhem.

Não, estes casos não se resolvem com mais polícia à porta da escola.

Não, aos professores nunca é fornecido um “código de conduta” que os auxilie, oriente e proteja quando se trata de actuarem sobre estas situações.

Sim, as crianças que vitimam, regularmente, colegas não são, sobretudo, crianças perigosas. São, antes de mais, crianças em perigo. Mas nunca são entendidas desta forma nem pelas escolas nem pelas comissões de protecção que as deviam proteger.

Não, não se trata de abordar o bullying com alarme social. Mas de reconhecer que as crianças parecem saber cada vez menos viver a agressividade com lealdade e com boas maneiras. A forma como são expostas, de forma precoce e negligente, às redes sociais não as ajuda. Mas também não é com aulas de educação cívica que se erradica a violência da escola.

Sim, aquilo que terá acontecido com um criança imigrante pode servir de interpelação para não lidarmos com a violência na escola como um “novo normal”. Entretanto, se nos esclarecerem o que terá, de facto, acontecido com um menino imigrante de 9 anos, todos nós agradecemos. Porque aquilo que se espera para todas as crianças que vivam em Portugal é que elas sejam “nossas”. Que sejam protegidas. E que o seu desenvolvimento seja um compromisso de todos para com todas elas. E para com a humanidade.

E sim, a forma como lidamos de forma distraída ou negligente com ele, e não protegemos as crianças vítimas, torna-nos, a todos, cúmplices com o bullying.