Escrevo sobre um livro muito diferente do habitual. Soube dele há quatro ou cinco meses, porque os autores gostariam de o apresentar na Sociedade Histórica da Independência Nacional, isto é, no Palácio da Independência; e pretendiam também que fosse eu, o Presidente, a fazer a apresentação. Com os minutos contados, por causa de várias causas de que me ocupo, fui encontrando tempo, com gosto, para o ler e preparar a apresentação. Foi a 27 de Junho, no Palácio, ao Rossio, em Lisboa. Excedeu-me as expectativas. Tal como o livro já havia excedido. Recomendo-o a todos, como aprazível leitura de fim de Verão. Vão gostar. E, várias vezes, sorrir ou rir abertamente.

O livro é da autoria de Maria João de Castro e Rafael Rodrigues da Pena, com chancela da Astrolábio Edições. Embora escrevam bem – mesmo muito bem –, não são autores conhecidos. Busquei notas biográficas. Maria João de Castro, de nome completo Maria João Belfort Sena de Castro e Melo, é uma fidalga minhota que nasceu, em Lisboa – em São Sebastião da Pedreira, pois claro –, na década 40 do século passado (estando, portanto, com 75 a 84 anos). É médica, com especialização em Medicina Tropical e obra publicada. Quanto a Rafael Rodrigues da Pena, é um padre católico nascido em 1957 (com 67 anos, portanto), em Ruivães (presumo que em Vieira do Minho). É licenciado em História (Ludwig-Maximilians Universität de Munique), ensaísta, com vasta obra publicada, e professor universitário no Porto. Não conhecia nenhum, nem deles ouvira falar. E há boas razões para isso: não existem. Trata-se de pseudónimos de duas figuras conhecidas da sociedade portuense, com relações próximas com a família da minha mulher: respectivamente, Luís Sena de Vasconcelos e Tomás A. Moreira, cujas referências biográficas também são resumidas nas badanas do livro. Gente capaz, com vida feita.

O livro intitula-se “O Legado de D. Luís II” – e ficamos logo na dúvida sobre quem será este D. Luís II. Todos sabemos que só houve um rei Luís na nossa história: o rei D. Luís I (e único), irmão de D. Pedro V e pai de D. Carlos. Seria outro pseudónimo? Seria uma daquelas maluqueiras esporádicas a reivindicar a sucessão real em Portugal? Não. Este D. Luís, o segundo, existiu mesmo e este livro fá-lo viver para além do regicídio.

Esse é o enredo do livro e a história que desfia: como poderia ter sido a História de Portugal, se, naquele trágico 1 de Fevereiro de 1908, em que foi assassinado o rei D. Carlos, no Terreiro do Paço, o príncipe-herdeiro Luís Filipe tivesse sobrevivido com a rainha D. Amélia (e o príncipe morto com o pai tivesse sido D. Manuel e não ele). É um livro do género “what if?”, isto é, imagina como a ocorrência de um facto diferente ou a intervenção de uma dada figura poderiam determinar outro curso ou outro desfecho aos acontecimentos da história. É o que os autores fazem. E realmente conseguem-no neste livro, com muita imaginação e ainda maior competência.

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O livro e sua estrutura original

Com as minhas categorizadas credenciais de crítico e perito literário, identifiquei o livro como de estilo pandego-sério, articulando a escrita escorreita, a abordagem leve e o finíssimo humor que brilha, aqui ou ali, aos mais diversos propósitos, com o tratamento muito sério e cuidadoso de aspectos da nossa vida colectiva e da nossa história. É todo ele uma explosão brilhante de imaginação e engenho, que nos surpreende continuamente desde o direito constitucional, ao manejo da política, aos movimentos sociais, à sucessão dos acontecimentos que marcaram a história da Europa e do Mundo, a seguir a 1908 e até 1987, onde a narrativa acaba. Concordemos, ou não, com os caminhos descritos, é absolutamente extraordinária, pela sua possibilidade ou verossimilhança, a forma como os autores articulam o reinado de D. Luís II com o que realmente se passou naquele tempo, incluindo duas guerras mundiais e a guerra civil de Espanha. (O livro apresenta-se como reportando a “100 anos de história alternativa”, 1887-1987, uma vez que conta o início no nascimento do príncipe Luís Filipe, em 21 de Março de 1887. Porém, a “história nova” é somente a seguir ao 1 de Fevereiro de 1908.)

O livro é muito completo, com um esquema original, compondo-se de três livros:

  • Livro I: Cem anos de História Alternativa – é da autoria dos dois autores, a Maria João e o Padre Rafael, narrando, em cerca de 110 páginas, como teria sido a evolução política do país nos reinados de D. Luís II (1908-1966), D. Duarte II (1966-1976) e D. Duarte III (1976-…). Sim, não temos só um novo D. Luís, mas ainda dois novos D. Duarte, a seguir. D. Duarte II é D. Duarte Nuno, que entra na linha da sucessão, quando, em 1937, morre tragicamente o príncipe Carlos. (Aos reis já tinha falecido, em 1918, a infanta D. Isabel, muito criança, vitimada pela gripe espanhola, a “pneumónica”, que matou milhões no mundo e dezenas de milhar em Portugal). E D. Duarte III é o actual Duque de Bragança, D. Duarte Pio, que, por morte, sucede ao pai e está a reinar quando a narrativa acaba.
  • Livro II: O Caso “Z” – não, descansem, não é o Zorro… Este livro, só da autoria da Maria João, com 90 páginas, conta a breve relação amorosa, em 1907, em Paris, do príncipe Luís Filipe (tinha 20 anos) com uma aristocrata russa, Zenaide Youssoupov – mais tarde, já americana, chamar-se-ia Elizabeth Vanderbilt. Ficamos a saber, sem nunca nos ser dito, que, da breve relação amorosa, entre Luís e Zenaide, nasceria uma filha, Louise – esta viria a ter fim trágico junto com outro filho (o herdeiro) de Luís II. Para esta história de encontros e desencontros, contribuem Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros. O nome EliZabeth carrega o mesmo Z de Zenaide, sendo o Z marca também do legado de D. Luís II. Vale a pena ler. E ajuda a compreender o resto.
  • Livro III: Outras Estórias na História – também só da autoria da Maria João, são 210 páginas com a colecção de notas do avô, o General José Vicente de Senna, que foi realmente testemunha presencial do regicídio e, na história alternativa, serviu de perto o rei D. Luís II. As notas, organizadas em 19 temas, são complementos do Livro I. Destaco: as viagens a África e ao Oriente do Príncipe Real (único trecho anterior ao regicídio); o Tratado do Porto; a Corte em Luanda: a Dúvida (1944); a questão colonial; Salazar, Angola e a Índia; Luanda (1965-1972); A última viagem de D. Luís (1968); Sá Carneiro e a C.E.I.A.S.A. (1972). Mas todas as estórias deste capítulo são, muitas vezes, excitantes e importantes para enquadrarmos o voo da imaginação e enriquecermos a narrativa principal do Livro I. Também se lêem bem, ou de uma assentada, ou agrupando algumas por dia, para assimilar e digerir.

A nova Constituição de D. Luís II e a projecção do seu reinado

O livro parte, como é natural, do pensamento dos seus autores, que se situam à direita, e da visão monárquica, que valoriza a plasticidade da instituição real, para servir, sobretudo em situações muito difíceis e adversas, os superiores interesses do país, com independência relativamente aos partidos e acima destes. E, por isso, o percurso que é descrito, no reinado de D. Luís II, acompanha quer o clima internacional, quer as ondas das correntes de opinião em Portugal, procurando defender o património colectivo de Portugal, manter a coesão nacional e respeitar a democracia. Atravessa, além das guerras, o integralismo, o nacional-sindicalismo, a grande depressão, os nacionalismos, o Estado Novo (reduzido a 1946-1965), a recomposição mundial no pós-guerra, a questão colonial.

D. Luís II herda a Carta Constitucional, mas, a seguir à 1.ª Grande Guerra, promove a adopção de nova Constituição, em 1921, que vigora até ao fim da narrativa do livro (1987), embora com algumas revisões. Os autores não são constitucionalistas, mas conceberam um quadro constitucional interessante: um denominado “regime monárquico-presidencialista”, ou um regime de Rei e Presidente. Mais interessante ainda é a divisão político-administrativa prevista, com grande autonomia, instituindo Estados (a maior parte, no Portugal ultramarino) e, dentro dos maiores, Regiões. Cada Estado tinha a sua Assembleia Nacional e, no conjunto do país, em Lisboa, haveria um Senado, representando todos. O Presidente do Conselho era eleito pelo conjunto das câmaras parlamentares, onde devia dispor de maioria. O regime era democrático, sujeito a eleições regulares. Os autores asseguram que “Teixeira de Pascoaes, Ramalho Ortigão, Fernando Pessoa, António Sérgio apoiam [a Constituição] com entusiasmo.”

D. Luís II reinou com dois primeiros-ministros, um Presidente de Junta Militar e, já na Constituição de 1921, sete Presidentes do Conselho, a saber: João Franco (1906-1913), Bernardino Machado (1913-1917), Sidónio Pais (1917-1924), Norton de Matos (1924-1930), Rolão Preto (1930-1940), Oliveira Salazar (1940-1965), Franco Nogueira (1965-1972), Sá Carneiro (1972-1980), Pinto Balsemão (1980-1986), Mário Soares (1986-…..). Vê-se como teria conseguido velar pelo equilíbrio do desenvolvimento politico do país, evitando rupturas e respondendo aos desafios de cada momento. Norton de Matos (que foi uma grande figura da oposição a Salazar) teria ganho as primeiras eleições da Constituição de 1921. E faz sorrir o episódio do afastamento de Salazar por D. Luís II, em 1965, seguindo a atrevida sugestão de D. Duarte Nuno: “Obviamente, demita-o”. Seguir-se-lhe-ia Franco Nogueira, que permitiria a legalização de todos os partidos políticos.

As datas históricas que conhecemos acontecem também, mas com outros conteúdos e significados. Por exemplo, o 5 de Outubro de 1910 não é a implantação da República, mas o casamento solene de D. Luís II com Isabel Maria de Bragança, da linhagem miguelista, casamento por que D. Luís quis reunir e reconciliar os dois ramos da Casa Real, desavindos desde há quase um século – um sinal importante de unidade para os monárquicos e para o país. A revolta republicana aconteceria noutro 5 de Outubro, o de 1912 – para os autores, a Revolução de Outubro. Mas fracassaria, pela razão de que, no momento decisivo, D. Luís II disse que não se ia embora, mas ficaria ao lado das forças leais para vencer o combate – exactamente o inverso do que, na história real, aconteceu com D. Manuel II, em 1910. E também o 28 de Maio de 1926 não é o golpe de Braga de Gomes da Costa, que nos conduziu à Ditadura Nacional; é o dia da assinatura do Tratado do Porto, pelo qual Portugal recebe da Sociedade da Nações a administração da Tanzânia e de Zanzibar, perdas da Alemanha no final da 1.ª Grande Guerra. Este, uma espécie de desforra do Mapa Cor-de-Rosa, foi consequência de Portugal, durante a guerra, ter assumido a posição junto dos Aliados, sobretudo os britânicos, de aceitar mobilizar-se em armas contra os alemães, mas não em solo europeu, apenas nos cenários de guerra em África. Estes são alguns dos desenvolvimentos desconcertantes da História europeia e mundial que poderiam ter acontecido. Há outros êxitos internacionais assim, conseguidos pela ousadia diplomática de D. Luís II, como a recuperação acordada de Olivença, no quadro da guerra civil espanhola, ou o Tratado de Aliança Indo-Português que, em 1961, resolveria em paz a questão da Índia. Vale a pena ler para saber como poderia ter sido.

D. Luís II tornar-se-ia uma grande figura internacional. Foi assim desde o regicídio, granjeando respeito generalizado pela fibra com que reagiu a esse momento trágico e conduziu os primeiros anos de reinado. E, depois, pela inteligência, capacidade diplomáticas e sentido de Estado de que deu provas nas grandes crises internacionais do seu tempo. As suas exéquias, no final do ano de 1968, com a presença de chefes do Estado e outros líderes políticos de todo o mundo, são a ilustração disso mesmo. Nós próprios, como leitores, sentimos saudades.

A interrogação final

Há aquela famosa história no cinema, quando nos sentamos para ver o filme policial de grande suspense, as luzes se apagam e a fita começa a rolar, alguém vem por detrás e, a sussurrar-nos ao ouvido, logo nos desvenda: “Foi o mordomo. Foi o mordomo.”

Não vou fazer isso. É preciso ler para sentir o final a chegar e ficar, ali, em suspenso, onde os autores nos deixam em 1987. Terá sido o triplo referendo em 21 de Março de 1987, dia do Centenário de D. Luís II? Ou, por pressão de um misterioso MRFA, novas eleições marcadas para 25 de Abril de 1987, depois de suspenso o referendo convocado? Só lendo podemos entender o tempo de crise nacional onde a narrativa se interrompe. Reinava D. Duarte III.

É uma excelente leitura – e divertida – para este tempo das vindimas. Grande história, esta!