Seria de esperar que num país cuja classe política, em quatro décadas de democracia, conseguiu o feito de discutível mérito de conduzir o Estado por três vezes à bancarrota houvesse alguma consciência da importância de ter os governos – independentemente da sua base de apoio partidária – sujeitos a alguma forma de regras orçamentais minimamente credíveis. Ora, independentemente das várias tipologias de regras orçamentais que é possível conceber, a sua credibilidade depende inevitavelmente da existência de mecanismos de aplicação eficazes.
É por isso preocupante – e até algo bizarro – que perante o recente anúncio de não aplicação de sanções ao Estado português por incumprimento das regras orçamentais a que voluntariamente se vinculou, todos se apressem a tentar colher créditos, ao mesmo tempo que passam por cima das questões que deviam ser centrais: como vai Portugal corrigir a sua trajectória orçamental e como será possível relançar o crescimento na economia portuguesa, que basicamente desperdiçou os últimos 15 anos.
É certo que a fundamentação da decisão europeia de não aplicar sanções pode ser vista também como uma forma de aumentar a pressão sobre o governo da “geringonça”. Uma espécie de última hipótese para quem se tem comportado mal e dá poucos sinais credíveis de desejar inverter o rumo. Esta interpretação tem alguma razoabilidade, mas o facto essencial foi mesmo a não aplicação de sanções, que reforça a convicção dos agentes políticos envolvidos de que as regras não são – realmente – para levar a sério.
No momento de decidir aplicar as regras – ou tirar as devidas consequências da sua violação sistemática – há sempre um motivo conjuntural para adiar a decisão, ajustar os objectivos e, basicamente, passar a batata quente para outrem. Neste contexto, para governos apostados em ter défices superiores ao permitido pelas regras voluntariamente acordadas no contexto da UE e zona euro, é politicamente racional apostar que, no momento da verdade, faltarão a coragem e a determinação para aplicar sanções, pelo que o “crime” acaba por compensar.
Para que todos vão mantendo a face – e enganando os respectivos eleitorados – basta que os governos que violam as regras finjam estar comprometidos a respeitá-las e que os restantes – assim como as instituições europeias – finjam acreditar. Quando chega o momento de decidir, as regras anteriormente acordadas são depois mais ou menos irrelevantes e quase tudo se resume a um jogo de negociação política e medição de forças, onde cada governo pondera os efeitos junto do seu respectivo eleitorado da posição a adoptar.
As próprias notícias recentes sobre o alegado “sucesso” da execução orçamental do Estado português no primeiro semestre podem e devem ser vistas à luz deste contexto. Enquanto os propagandistas oficiais e oficiosos da “geringonça” embandeiraram em arco na comunicação social e nas redes sociais, os socialistas com maiores conhecimentos e responsabilidades foram, regra geral, mais prudentes. João Galamba, por exemplo, preferiu cautelosamente realçar que se trata de um exercício orçamental “muito difícil”.
De facto, a receita muito abaixo do orçamentado pelo governo confirma as piores previsões sobre a evolução da economia portuguesa. Ao mesmo tempo, do lado da despesa pública, o exercício de contenção parece à primeira vista extraordinário mas infelizmente há boas razões para acreditar que assenta em boa parte em alguns “truques”. Desde várias técnicas e expedientes para o adiamento da despesa até à queda ainda mais acentuada do investimento público, tudo parece cuidadosamente encenado para que a execução pareça bem na fotografia, mesmo que a imagem pouco corresponda à realidade subjacente.
Como apontou Ricardo Arroja na conclusão da ponderada e elucidativa análise que realizou da execução orçamental:
“Em suma, os dados ontem publicados pela DGO são para Bruxelas ver [that] Portugal is on track for a 2.2%/2.3% deficit e inserem-se na estratégia adoptada pelo Governo no dossier “sanções”. Mas as pressões que se vão sentindo do lado das receitas, cujo crescimento está a 60% do esperado, e as pressões previstas do lado da despesa, fazem com que a execução orçamental permaneça claramente em risco, fazendo com que a meta do Governo não seja alcançável, e pior, recuperando vícios do passado que apenas prejudicam o funcionamento da economia.”
No meio de tudo isto, Mário Centeno ainda consegue comprometer-se junto de Bruxelas a intensificar o ajustamento estrutural em 2017 para 0,6% do PIB, o que reforça a encenação que está a ser levada a cabo. Ou seja, por agora importa declarar a intenção de cumprir as regras – mesmo que se acumule a evidência que aponta em sentido contrário. Depois, será sempre possível invocar um qualquer factor extraordinário: o Brexit, uma hipotética vitória de Trump nos EUA, uma má participação portuguesa nos Jogos Olímpicos do Rio ou, quem sabe, uma recém-descoberta incompetência catastrófica do próprio Mário Centeno.
Se o rumo não for alterado, a única coisa certa será a quarta bancarrota do Estado português em quatro décadas de democracia. A responsabilidade principal será, naturalmente, portuguesa mas a sucessiva descredibilização das regras orçamentais no âmbito da UE terá também dado um contributo importante para esse desfecho. Por muito que todos finjam, no final nenhum dos envolvidos ficará bem nesta fotografia.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa