Em artigo no Observador, notei há dois anos que “voltaram a ver-se areais manchados de negro e espumas acastanhadas na rebentação […], na Costa de Caparica, denunciando a presença de hidrocarbonetos nas águas, e quiçá muitos pequenos derrames.”

Até aos anos 1980s, as praias da Costa de Caparica e da costa ocidental em geral eram frequentemente manchadas por resíduos negros, líquidos ou em pequenas bolas, que até se colavam aos pés. Vários instrumentos de Direito Internacional e regimes internacionais vieram regular a matéria, complementados com fiscalização. Nos anos 1990s, acabou na prática a poluição (voluntária) por hidrocarbonetos, resultante de lavagens de tanques ou descargas de resíduos oleosos de navios em trânsito nas nossas costas.

Está a voltar. É um manifesto retrocesso. É provável que as recentes manchas sejam de hidrocarbonetos, e resultem de pequenas descargas de embarcações em operação perto da costa (não há informação pública sobre a natureza das espumas e das manchas nos areais). Sugeri então que a situação naquelas praias “indicia falta de acompanhamento, e de fiscalização e controlo”. Outro retrocesso.

São retrocessos muito graves, porque, nestes 30 anos, reduziu-se muito a tolerância face a toda a poluição. Hoje, o Estado é (e bem) passível de ser responsabilizado (por ação e por omissão) pelos danos que aquelas manchas e espumas podem provocar nos cidadãos, e nas suas atividades. Mas nem assim os órgãos de soberania, e os funcionários públicos responsáveis pela fiscalização atuam. Não é por falta de aviso, por falta de especialistas, ou por irrelevância da matéria: a omissão é uma escolha, um reflexo das prioridades, que desdenham o que não tem impacto mediático.

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Dirigi aquele artigo ao Governo empossado poucas semanas antes. Passaram dois anos e nada melhorou. Falta há décadas uma política e uma orgânica institucionalizadas para o combate à poluição do mar, e das praias com origem no mar – num país com alta produção legislativa, era difícil exibir de modo mais eloquente o desdém pela matéria.

As manchas negras nos areais da Costa de Caparica revelam também que a narrativa das poupanças, ou duplo uso, não tem substância prática, e não passa de um instrumento de propaganda corporativista (inventado por dirigentes da Armada e ecoado por várias vozes, com a tão portuguesa superficialidade). Cá, não fiscalizam a poluição dos espaços marítimos, mas a Armada e o Estado gastam recursos a mandar submarinos para ir ao Atlântico Sul, ou para operar sob gelo ártico, operações cujos benefícios servem pouco ou nada o Estado e o país, mas servem e muito a promoção mediática do comandante da Armada – com o patrocínio do seu ministro, e sem incluir na fotografia o comandante dos exércitos, que comanda os meios inseridos no Sistema de Forças, incluindo o submarino em causa. Mais: o comandante da Armada anda a fazer queixinhas de a GNR fiscalizar a pesca, que reclama, erradamente, ser exclusivo da Armada – é uma competência policial, pela Constituição e pela lei –, e entretanto não fiscaliza a poluição do mar.

A falta de substância prática revela-se ainda no discurso do atual comandante da Armada, sempre em promoção mediática, agora também autoridade académica da segurança marítima; alguém está a insuflar o seu currículo feito de promoção pessoal e opiniões.

A poluição do mar só mereceu a atenção dos comandantes da Armada para propaganda; de resto, mantiveram conveniente distância para não saírem “manchados” e poderem deixar que sejam os subordinados a ficar “manchados”. (A Academia de Marinha também há muito que desdenha esta vertente da segurança marítima.) Os comandantes da Armada não propuseram diplomas legais para regular a matéria – mas vários propuseram, por exemplo, diplomas para aumentar poderes e recursos da Armada ou do seu pessoal (destaca-se o “decreto-lei 234/2017”, nunca aprovado).

Os atores políticos desdenham o combate à poluição do mar, mas não são fingidos: como o seu discurso é omisso, ações e discurso vão a par. O que também não espanta, pois a direção e a responsabilidade política estão atribuídas aos governantes das Forças Armadas (a chamada área da Defesa Nacional), que têm mais que fazer – mas que teimam em não abdicar desta “quinta”, ainda por cima, por motivos frívolos…

É sensato tratar de formular as políticas públicas e os seus instrumentos na ausência de  problemas graves em curso, e mais quando o conhecimento e a tecnologia para os elaborar já assentou. A formulação “a quente” leva a que tais instrumentos privilegiem emoções e a experiência com um caso concreto, e não o espetro de casos que a lei geral e abstrata deve visar. Mas os períodos sem crises não têm sido aproveitados pelos atores políticos; nem sequer pelo Presidente da República para focar as atenções no vazio legal sobre a matéria.

A poluição do mar tem estado fora da agenda política, e também da agenda mediática. Editores e jornalistas (e, menos, os comentadores) têm culpas, porque não dão qualquer relevo objetivo e substantivo a esta matéria – e aos problemas da Autoridade Marítima, em geral. E os atores políticos – pouco versados nos problemas do mar e da Autoridade Marítima em geral, mas fãs de chavões e de simplismos – julgam este silêncio mediático como prova de que não há problemas, e que estão dispensados de lhe dar atenção.

Assim, dirijo ao novo Governo o que escrevi há dois anos: há problemas de poluição do mar e falta há décadas em Portugal uma política pública de regulação e fiscalização; um Governo que se apresenta como reformista tem o dever de a formular e concretizar, e já.