Prossegue a bom ritmo a campanha mediática de promoção da imagem de Gouveia e Melo; e ele deliciado.

A campanha foi lançada em 2021 por “líderes de opinião”, para o cargo de Presidente da República (PR), seguidos por um pelotão de jornalistas e comentadores. Na frente do pelotão estão, ombro a ombro: a SIC e o Expresso, e o próprio Pinto Balsemão, que lhe ofereceu um globo de ouro e tempo em podcasts; e o Diário de Notícias.

Campanha mediática quer sondagens. Arranjaram uma que dizia ser o preferido num lote, com 30% de preferências – 30% no topo da popularidade! Desde então, desceu. Mas não faltam comentadores agarrados à primeira sondagem e a dá-lo como o próximo PR

A campanha começou por dirigir-se às massas, devido ao papel assumidamente belicista de Gouveia e Melo em 9 meses na distribuição de doses das injeções para combater o SARS-COV-2. Depois, o protocandidato começou a perder o apelo transversal às massas; agora já dizem que é candidato da direita. Surge então André Ventura, o primeiro ator político a sugerir Gouveia e Melo para PR. O protocandidato não enjeitou a ideia.

Andamos nisto há quase três anos, sem uma análise objetiva da figura e da situação, nem que seja para arrumar ideias. Vejamos alguns factos relevantes.

A distribuir doses, Gouveia e Melo foi apreciado pela sua atuação num papel executivo, no âmbito logístico; foi consistente com a imagem de “fazer coisas”, que criou na sua carreira militar, embora no plano operacional (não logístico). Mas a campanha mediática aponta-o para PR, um cargo profundamente político, não-executivo, que exige valiosa experiência política; tudo o que Gouveia e Melo nunca foi nem tem, e todos sabem.

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Vejamos agora posições de Gouveia e Melo, que deixam qualquer democrata preocupado.

Há uma contradição gritante em Gouveia e Melo: diz que não é político, e que não quer concorrer a PR, para o vir a admitir, assim como ministro do mar… e a manifestar posições políticas, e reiteradamente; chegou a fazer anúncios políticos que competem aos órgãos de soberania. Muitos não esquecemos a afirmação “Este país eram anos para endireitar.” É óbvio que tem ambições de poder, também na política.

Dito isto, António Costa pôde escolher e preferiu tê-lo como chefe militar (comandante da Armada) do que como seu ministro do mar. Se julgava que, num cargo militar, se tornaria mais reservado, Costa falhou, como foi previsto. E, apesar das simpatias de membros do CDS, Luís Montenegro também não o escolheu, nem para subsecretário de Estado. Parece que só Rui Rio o ia escolher, se não fosse nomeado comandante da Armada.

Gouveia e Melo pode assumir posições políticas por vaidade, ou por sentir-se invulnerável pelo que diz e faz; foi um candidato a deputado que, com pinças e em vez do ministro da Defesa, o colocou no seu lugar face às suas mais recentes posições políticas. Ou por ter sido aconselhado a seguir a ideia-feita de que o político não-político tem o sucesso garantido – regra que só terá sido validada uma vez, se é que foi…

Gouveia e Melo foi publicamente advertido pelo seu anterior chefe por estar muito ocupado com a sua campanha mediática. Foi notada uma pausa; e reagiu dizendo que estava “110%” ocupado com a Marinha. Mas voltou ao protagonismo mediático; e até assumiu a regência de uma cadeira universitária num curso de Direito, numa matéria em que não tem reconhecido passado académico ou profissional…

Outro aspeto preocupante são os atos que Gouveia e Melo pratica e que são apresentados como proezas só por ele alcançáveis. Assim, fixou em 31 dias o recorde de permanência dos submarinos “Albacora” em imersão, por “mais um dia só para não deixar o recorde nos franceses”… Também fez um submarino cruzar o equador, e navegar sob gelo ártico, com ele próprio embarcado. Estas “proezas” não têm óbvia utilidade para o país; são preciosas, mas é para a sua promoção pessoal perante tantos que privilegiam a imagem sobre a substância. Neste plano, falta quem investigue os custos e os benefícios concretos destas “proezas”, que fim serve ir embarcado o comandante da Armada, e porque foram autorizadas politicamente, sobretudo quando faltam recursos para as tarefas prioritárias.

Os media – sempre e bem, interessados nos custos e benefícios das atividades públicas – nada escrutinam sobre Gouveia e Melo; ou, pelo menos, nada de negativo divulgam daquilo que lhes chega. Abordam o seu passado como uma hagiografia ou, no mínimo, apologia.

A falta de escrutínio dos media estende-se à opção de António Costa de aplicar €132M de dinheiro dos contribuintes num “porta-drones”, um protótipo concebido por Gouveia e Melo, sem quaisquer estudos especializados a sustentar a ideia. Mais: o Governo delegou em Gouveia e Melo a gestão do processo, apesar de a lei atribuir ao diretor-geral de Recursos da Defesa Nacional a competência legal para a aquisição de navios (art.14º/2.g e 2.k do DL 183/2014 e art.2º/2.j, 2.l e 2.n do DReg 8/2015); e ninguém questiona a irregularidade. A qual prosseguiu, também sem qualquer escrutínio, com a delegação de competências do Governo em Gouveia e Melo para adquirir mais meios navais.

Quando todos os dias jornais e TVs fazem eco de peças divulgadas pelos concorrentes, é relevante o silêncio generalizado sobre a pronúncia pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 2016 por um crime praticado em serviço, um facto inédito; Gouveia e Melo e o seu chefe retrataram-se perante a vítima para evitarem o julgamento, e o silêncio mediático foi a norma. Outros factos reprováveis ocorreram, com a generalidade dos media em silêncio sobre eles, e fazendo de Gouveia e Melo um “herói”.

O mesmo silêncio também vigorou quanto à denúncia de irregularidades nas prioridades de vacinação, acordadas entre Gouveia e Melo e a Ordem dos Médicos, o tipo de problemas que levou a Francisco Ramos ser substituído por Gouveia e Melo.

Além de militar operacional e submarinista durante décadas, os media dizem às massas que, sem qualquer formação específica, Gouveia e Melo é especialista em infecciologia e vacinas, em arquitetura naval, em relações internacionais, nas políticas do mar – e até em Direito…

A vaidade de Gouveia e Melo também é um aspeto notado por alguns comentadores, que não merece eco mediático. Já sobre a inteligência de Gouveia e Melo não se acha quem a mencione. Dada a hagiografia e a apologia dominante, este vazio tem significado.

Há abundantes comentários nas redes sociais dizendo que Gouveia e Melo é bonito e que votarão nele, sugerindo uma relação de causa-efeito. Atributo também referido na muito objetiva RTP, mas não só.

O que explica esta campanha mediática intensa e enviesada? Como surge um “herói” em 9 meses, numa função logística com baixa complexidade técnica, sem riscos de relevo e com os recursos que quis? Por que razão Gouveia e Melo se acha invulnerável? O que explica o ensurdecedor silêncio dos órgãos de soberania sobre as declarações políticas de um militar no ativo, sujeito a dever legal de reserva?

Que André Ventura promova Gouveia e Melo não surpreende: há ali popularidade, e ainda tem um ano e meio para mudar e lançar outros nomes, ao sabor da sua agenda populista. Mas como se explica o empenho de Balsemão num militar para ser PR? Ele, que patrocinou a Revisão Constitucional de 1982, ostensivamente contra os militares na política, e contra o Presidente General Ramalho Eanes em especial. E não era por questões pessoais: como Freitas do Amaral, coautor da reforma, me explicou, a doutrina militar e a sua cultura típica tornam os militares em geral fracos atores políticos; o modelo é rejeitado pelas democracias – e até Gouveia e Melo subscreveu estas posições

Admito as seguintes hipóteses explicativas. Em parte, a superficialidade da larga maioria dos jornalistas e comentadores, um facto público e notório: não investigam, não escrutinam, e ficam-se pelas aparências ou pelo “diz que disse”. Comentando tudo a toda a hora, não admira que achem que também Gouveia e Melo pode saber de tudo e mais um par de botas.

Pode ser também, em parte, o sebastianismo típico dos portugueses, que tantos jornalistas e comentadores representam ou têm interiorizado. Pode explicar a fé de estarem ante um “herói”, e o esforço que fazem para afastar tudo o que perturbe a narrativa apologética.

Pode ser ainda, em parte, a distância às eleições. Quando sofriam psicológica ou fisicamente com o SARS-COV-2, Gouveia e Melo era um protagonista nas vidas das massas. Os 30% na primeira sondagem refletiram a gratidão pelo que elas achavam ser uma ação benemérita. O tempo mudou os protagonistas e as prioridades, e impôs maior objetividade na avaliação, o que frustra os propagandistas.

E, tem de se admitir, uma explicação parcial pode estar em agendas nebulosas. Quando há um silêncio generalizado da maioria dos media sobre aspetos negativos, há que considerar manipulação propositada.

Acresce a inconsistência das declarações públicas de Gouveia e Melo, uma pessoa que todos concordam que é francamente afirmativo, focado e firme. Esta inconsistência sugere que há vários polos de decisão; Gouveia e Melo é só um deles, o que dá a cara.

A inconsistência e a concertação mediática mostram que está alguém por trás de Gouveia e Melo. O nevoeiro que o envolve sugere que estão a promover um “D. Sebastião”. A coisa não está a correr bem, e ainda bem, porque não é coisa boa.