Sempre que alguém sugere um corte de impostos, por mais insignificante que seja, ouve-se um coro afinado de vozes críticas dessa eventualidade, um alerta para os males que daí virão ao mundo. Faltaria dinheiro para a saúde, para as reformas, para a educação, para as polícias e Portugal passaria a ser um país de doentes e analfabetos, sem lei nem ordem. Por outro lado, quando algum político propõe um qualquer aumento de despesa, sempre essenciais e imprescindíveis, poucas ou nenhumas são as vozes que questionam o que se vai cortar em compensação – porque é raríssimo eliminar qualquer despesa, seja ela qual for.

A pergunta que quase nunca é feita teria resposta simples: a nova despesa vai pagar-se com mais impostos porque tudo se paga com impostos. Antes de perdermos o controlo da impressora, ainda se podia compensar a nova despesa com impressão de moeda, criando um género de imposto disfarçado, chamado inflação – e que recentemente voltou, depois da Europa ter voltado a ligar o motor que produz moeda. Na ausência de uma Máquina das Patacas, resta saber quando será paga essa nova despesa. Se de imediato, financiada com impostos no próprio orçamento, ou se o custo será deixado para o futuro, para quem vier depois.

Os governos portugueses das últimas décadas promoveram à exaustão uma forma de atuação perniciosa. Anunciaram-se novas medidas despesistas a cada orçamento, medidas que valeram e compraram votos, e deixaram-se os custos financeiros e políticos para pagar no futuro, gerando défices, financiando-as com divida ou através de Parcerias Público-Privadas que na prática, também representaram dívida.

Com um crescimento mínimo que não permitiu compensar os aumentos sistemáticos da despesa, os défices foram-se acumulando até ser impossível financiá-los, altura em que fomos obrigados a estender a mão à caridade alheia, em plena crise internacional. Todos nos lembramos desses tempos em que chegou a conta do desvairo despesista de alguns governos. E foram aqueles que ficaram com a obrigação de resolver o problema que outros criaram, que acabaram por ser apontados como os culpados das dificuldades. É evidente que antes de chocar contra a parede estava-se bem melhor do que acamado num hospital, mas a iliteracia financeira fez com que muitos, uma maioria, atribuíssem a culpa da situação aos médicos e se esquecessem do acidente.

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Foi por esses anos que o Tribunal Constitucional determinou que não podia haver correção significativa dos desequilíbrios do lado da despesa pública, mas apenas através da receita, dando origem ao EAI (Enorme Aumento de Impostos) de Vítor Gaspar. Imaginavam os mais crentes, grupo no qual me incluía, que o EAI era apenas um acontecimento de existência transitória, a ser revertido após o regresso da normalidade esquecida e depois das lições, finalmente aprendidas, que nos impediriam de cometer os mesmos erros.

Acontece que, em Portugal, nada há mais definitivo que uma medida temporária e a memória é sempre curta. E por muitas proclamações do fim da austeridade que tenham sido feitas, nunca mais se voltou atrás. Bem pelo contrário, os impostos não pararam de subir, de forma mais ou menos velada, usando todos as astúcias disponíveis para mascarar os acréscimos, ano após ano. Anunciaram-se reduções fiscais imaginárias mas todos os anos a carga fiscal e os impostos atingiram novos máximos.

Os défices acumulados ao longo de décadas estão agora na dívida pública e serão obrigatoriamente pagos não por quem os criou, mas por quem está agora a trabalhar e pelas futuras gerações. Em consequência de erros passados, os nossos filhos e netos estarão a consagrar grande parte do seu esforço não para criar riqueza e acumular capital, mas para pagar as loucuras dos governos dos seus pais e avós. A dívida e carga fiscal são um pesado castigo que as gerações passadas e correntes deixam às próximas. Um crescimento forte nos próximos anos está já comprometido e é provável que Portugal continue no caminho para se tornar no país mais pobre da União Europeia.

Para evitar chegar à borda dos precipícios, alguns economistas defendem que a obrigação de orçamentos equilibrados é tão importante que deveria estar expressa na constituição. Nem todos concordam, principalmente os mais estatistas, que simpatizam com défices porque, na prática, estes significam mais economia pública e menos economia privada. Tendo o capitalismo ganho por KO ao socialismo há 30 anos, agora tentam a desforra, numa nova estratégia que consiste, basicamente, em ganhar por pontos a golpes de orçamento.

Há outras razões para pensar que pode ser inconveniente ter défices zero na constituição, sendo uma delas a resposta aos ciclos económicos. Argumenta-se que os governos seriam obrigados a tomar medidas pro-cíclicas, que podem agravar os impactos das recessões. Mas o que a história nos mostra é que os governos são anti-cíclicos nas crises e pro-cíclicos nas expansões, porque não há governo que não aproveite uma onda de crescimento para governar em festa.

Acontece que, surpreendentemente, a atual Constituição da República Portuguesa já exige Orçamentos equilibrados. No nº 4 do Artigo 105º pode ler-se:

“O Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua execução, as condições a que deverá obedecer o recurso ao crédito público e os critérios que deverão presidir às alterações …”.

O Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas, lê-se. Então porque é que não é inconstitucional apresenta défices? Por uma razão que deixará estupefacto qualquer estudante do 1º ano de Finanças ou de Economia. Admite-se que a contração de dívida pode ser considerada receita, através de um extraordinário e muito errado conceito de “Receitas Creditícias”. Para este efeito, a dívida contraída pode ser considerada receita. Como escreve o jurista Guilherme Valdemar d’Oliveira Martins, “As receitas creditícias são as que resultam da contração de empréstimos”.

Pesados prós e contras, ter défice zero na constituição, embora não dissipe os erros do passado, seria uma benesse para as gerações futuras. No processo de revisão constitucional em curso, apenas a Iniciativa Liberal é clara neste aspeto: “O Orçamento não poderá prever a existência de défice orçamental”. O PSD toca levemente no tema, duma forma pouco objetiva, propondo “a definição de um limite plurianual ao endividamento público no respeito pela solidariedade entre gerações” e escrevendo que “na elaboração do Orçamento devem ser tidos em conta os princípios da estabilidade e sustentabilidade orçamental, equidade intergeracional, solidariedade recíproca entre setores, da subsidiariedade e da transparência orçamental”.

Nenhum outro partido sugere qualquer alteração á forma atual. A revisão constitucional em curso poderia ser uma oportunidade de terminar este abuso que ao longo das últimas décadas transformou Portugal num dos países mais endividados do mundo, um castigo para as próximas gerações e um grande inibidor de crescimento futuro. Mas, infelizmente, tudo indica que ainda não podemos começar a recuperar a esperança.