Afonso teve o azar de nascer num tempo em que não estava na moda ser-se baptizado com aquele nome e, sempre que oiço alguém chamar por ele, sou imediatamente transportado tanto para os tempos de escola primária como, ao mesmo tempo, regresso ao tempo actual, quase a preparar-me para a sua despedida. Ponho-me a pensar se ele não terá sido moldado por causa do seu nome, do gozo a que foi sujeito, ou se ele já tinha que ser mesmo assim, estranho, isolado e, ao mesmo tempo, imprevisível e muito engraçado. Mas sempre isolado. Ria-se de nos ver a rir, pois as suas tiradas eram de antologia. O pior foi quando começámos a estudar os Reis de Portugal. Foi mudando de carácter consoante o Rei Afonso que íamos estudando. Foi o Fundador, o Bolonhês, o Bravo, o Africano, o Vitorioso, foi todos! Mas o Rei que se fixou nele (ou teremos sido nós a fixá-lo?) foi D. Afonso II, o Gordo, ou o Leproso. O Afonso era badocha e, por isso, na maldade de sermos crianças, o cognome ajustava-se-lhe. Quando não o queríamos por perto chamávamos-lhe, claro está, o Leproso. Foi-se isolando. E isolado de todos fez a sua vida. Sempre sozinho, sem grandes amigos, sem companheiros ou companheiras. De vez em quando encontrava-o. Ficava tempos infindos a tentar conversar com ele, mas ele nem sequer conseguia olhar-me para os olhos. Só fumava tabaco a granel. Em vez de usar mortalhas, enrolava-os em folhas de jornal recortadas do JN com as fotografias retiradas da página necrologia. Têm o tamanho certo! É só cortar, disse-me. Quando via alguém a fazer algo que não gostava, dizia “vai em paz que um dia destes já te fumo!” E ria-se. Há dias encontrei a sua fotografia num daqueles pequenos cartazes que as funerárias colam nas paredes a anunciar quem faleceu. Lá estava o Afonso. A foto era antiga e só quem tivesse sido colega dele é que sabia juntar o nome e a foto à pessoa. Fiquei triste, macambúzio e passei o resto do dia a pensar nele. É a vida. Mas eis que, passado uns dias, ao fazer a minha caminhada, dou de caras com o Afonso. Não queria acreditar. Ao ver a minha cara de espanto começou a rir-se e disse-me que tinha sido ele a mandar fazer o cartaz: é que deixei de fumar, sabes?
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Deixar de fumar
Só fumava tabaco a granel. Em vez de usar mortalhas, enrolava-os em folhas de jornal recortadas do JN com as fotografias retiradas da página necrologia. Têm o tamanho certo! É só cortar, disse-me.