Z. Zagalo dizia, a respeito da carreira do sogro do conde d’Abranhos, que o desembargador Amado «deixou-se ir e chegou». É, talvez, a expressão que tudo define. Eça de Queirós não era um sociólogo, terá sido mesmo, de certa forma, injustamente olhado como um retratista de época, que o foi menos do que um observador atento de certos tipos de cidadão português que têm percorrido épocas, regimes, sociedades, modas. «Deixar-se ir e chegar» é a frase definidora de uma certa, e naturalmente generalizada, categoria de elite portuguesa, como quem alcança sem esforço e sem glória, sem saudade e sem registo, embalada por uma conjuntura imutável toda ela feita de gente que se deixa ir e lá vai chegando, em socorro e amparo dos demais imbecis espíritos de Corte, naturalmente extractivos, vulgarmente solidários com a estupidez dos congéneres.

Recordei-me, por estes dias, e a propósito já nem me lembro bem de quê, do saudoso Artur Baptista da Silva, um burlão a quem alguma comunicação social deu – por alturas, evidentemente, do Governo de Passos Coelho – o palco necessário para ensaiar uma narrativa, em benefício de uma agenda política vastamente apreciada na imprensa nacional. O desgraçado aldrabão seria depressa descoberto e não houve, porque nem tudo é tão mau assim, hipótese de o salvar, não sem antes ter direito a largos minutos televisivos, crónicas laudatórias das suas teses, e mesmo a fornecer uma entrevista para uma secção de um jornal (chamada, acertadamente, ‘Vida Inteligente’), a tempo salva de saltar para as bancas e para a eternidade das hemerotecas – tudo possível na medida em que o charlatão, mais vítima que culpado, teve apenas o mérito de embasbacar a cretinice que lhe deu então voz e relevância.

Baptista da Silva não terá percebido, sabe-se lá por que razões, que não precisava de mentir, invocando ocupações profissionais e condições académicas falsas, para se elevar ao patamar da importância pública portuguesa. Exemplos de casos de sucesso, em tonalidades semelhantes às do burlão, sobejam, sem a necessidade da burla descarada, e até já com selos académicos verdadeiros que lhe podiam ter sido oferecidos a troco da difusão da agenda política certa e apreciada. Artur tinha as ideias certas para vingar. Faltou-lhe, talvez, a astúcia necessária. Ter-lhe-ia bastado ser franco, afirmar solenemente e a quem de direito a sua falta de pergaminhos, impôr-se aos almoços certos, sorrir muito, irradiar o seu charme de asno, enfim, existir, pastando, deixar-se ir e, por fim, chegar.

Artur não resistiu à fantochada que o próprio não impôs a ninguém, mas que lhe foi proporcionada. Sobreviveram-lhe os proporcionadores, num país onde tudo se tolera com esporádicos esperneares cívicos, como um boi que, estando impregnado de moscas, sacode, de quando em vez, a cauda para espantar uma ou outra.

Parece haver, em quase tudo, uma certa indisponibilidade para o levantamento da moral colectiva. Talvez mais por falta dessa mesma moral, o que é uma fatalidade; mas, por outro lado, por uma certa e melancólica apatia burguesa que nos afasta de outros patamares de actuação, o que é uma fortuna: afinal, a melancolia é o que nos salva da desgraça revolucionária. Mas entre a revolução e a inércia subsiste, intocável, um oceano de oportunidades. Julgo que lhe chamam reformismo. E que me parece já impossível de alcançar. É que, neste regresso de férias e princípios de Outono, enquanto os Baptistas da Silva homologados e os deputados da Nação, boa parte ainda sem biblioteca, discutem o Orçamento do Estado, os desenhos políticos do futuro, os «cenários», em análises infinitas, todas estas coisas me parecem inúteis e irrelevantes, sem conteúdo histórico ou pertinência intelectual, não se vislumbrando em toda esta cacofonia uma ideia, uma filosofia, um futuro. A melancolia e a apatia começam a parecer-me melhor refúgio, confesso. Pelo menos neste sítio onde tudo corre sem sobressaltos e todos parecem desejar, somente, deixar-se ir e chegar. O leitor perdoará.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR