Pois é. Um tsunami é mesmo assim. Um silêncio anestesiante e uma sensação de acalmia pesada. Depois um ruído que se avoluma. De repente, e sem que tenhamos tempo para reagir, a tempestade cai sobre nós, arrasta tudo e todos, não deixando muitas hipóteses de salvamento. Recorro aqui às memórias recentemente lançadas em livro por João Van Zeller que, banqueiro em Angola nos anos 70, conta como em 1975 manteve inalterado o programa de investimentos do banco, inaugurando com pompa e circunstância uma sucursal em Nova Lisboa. Sabemos bem o que aconteceu em Angola nos meses que se seguiram, num mundo que afinal estava já na iminência de desabar…

Regressando ao presente, é fácil encontrar um paralelo com as vicissitudes, as alegrias, as decepções e as traquinices que ocorreram nestes dias na instalação em Bruxelas da nova Comissão Europeia, que supostamente irá funcionar nos próximos 5 anos. De facto, em 1975 o sistema colonial português tinha já perdido a espinha dorsal, embora a vida parecesse navegar no seu percurso normal. No entanto, o que se seguiu em Angola foi terrível e dramático. Ao ignorar o significado do que está a acontecer na Europa neste momento, estamos a repetir o mesmo amargo engano.

Realmente, estamos a ignorar que a Rússia, ao ganhar a guerra à Ucrânia, vai lançar 10 ou 20 milhões de refugiados sobre os países europeus. A ignorar também o espectáculo de violência sanguinária que irá cair sobre os heroicos resistentes de mais de mil dias de luta sem tréguas, em imagens que ficarão gravadas para as próximas gerações, como testemunho indelével do que o mundo, e em particular a Europa, permitiu que acontecesse.

Mas há mais. Insistimos em ignorar o impacto do que está a acontecer com os Estados Unidos, pilar, há mais de um século, do mundo em que vivemos, mas que entretanto se demitiu desse papel. A maior potência económica e militar do globo vive hoje extasiada com a perspectiva de alcançar o seu eldorado guiada por um líder corrupto, incapaz intelectualmente de construir um projecto político coerente e que se dispõe a governar como os reis medievais, movido essencialmente pelos interesses e instinto pessoal. O que aconteceu nos EUA foi uma opção soberana, legítima e democrática mas que pôs ponto final ao quadro de alianças com as nações europeias, que agora se vêem preteridas nas simpatias americanas pelos… inimigos tradicionais.

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Estamos também agora a tentar acreditar que a China ainda é o gigante adormecido dos últimos séculos embora já não o vulcão marxista inconsequente da segunda metade do Séc. XX, quando apenas exportava loucura e ódio e praticava internamente a eutanásia sobre os seus próprios valores civilizacionais e sobre o papel do conhecimento. Na verdade, a China é hoje a potência industrial do mundo, que produz o que todo planeta consome, um milagre possível graças à tecnologia gentilmente cedida pelas empresas ocidentais. Mas o tempo das cópias baratas já passou. Os chineses já demonstraram serem capazes de surpreender e ultrapassar a tecnologia ocidental. O problema é que a vida de uma potência global tem inevitavelmente impacto, não só sobre a economia, como também sobre a realidade política e militar do mundo inteiro. E o que é impossível de ignorar, é que esta é a China de hoje.

O nosso engano de alma perante a realidade faz-nos também ignorar que, provavelmente, a espinha dorsal da Europa imaginada por Jean Monnet e outros à saída do caos da Segunda Guerra Mundial, já não existe e que a perspectiva de uma Europa onde os problemas e os recursos são geridos em conjunto pode vir a ser, muito em breve, uma coisa do passado. A Europa tem sido objecto nos últimos 20 anos de uma barragem de ataques sistemáticos por parte da Rússia, para quem o sonho de recomposição imperial é incompatível com a existência de uma grande potência vizinha. Pequenas e médias nações sim, mas Estados Unidos da Europa, de maneira nenhuma. Metodicamente, a Rússia vai cuidando dos dominós para fazer cair o edifício europeu. Primeiro a Hungria, pela mão de Orban, o Miguel de Vasconcelos de serviço. Depois virá a Eslováquia, a Chéquia e a seguir a Roménia, reposicionando a Rússia numa geografia europeia do pós-1945.

No entanto, para os objectivos da Rússia, o mais importante são mesmo os tiros nos porta-aviões. O primeiro, ocorreu no Reino Unido com o Brexit, e iniciou o desmembramento da União Europeia, processo que os antigos responsáveis dos serviços secretos ingleses não têm problemas em afirmar publicamente que aconteceu com influência directa do Kremlin. O porta-aviões que se segue é a França, onde um antigo partido de extrema-direita, que começou por ser nacionalista, anti-europeu, xenófobo, anti-semita e com simpatias nazis, foi entretanto reformado e civilizado pela filha do fundador, mas que subsiste financeiramente graças ao financiamento de Putin. Sem causar estranheza, Marine Le Pen, na iminência de conquistar o poder político, exige o corte nos financiamentos da França para o orçamento da União Europeia, entrando em rota de colisão com o resto da União. A queda anunciada do Governo Barnier abrirá finalmente caminho para um passeio triunfal de Putin nos Champs Elysées? Mas a cereja no topo do bolo está a acontecer na Alemanha, o colosso económico e industrial da Europa, onde o actual governo se confessa impotente face aos movimentos políticos pró-russos, anti-europeus e simpatizantes do passado nazi, que vão ganhando acesso aos lugares de direcção da vida política.

Desfeita a União Europeia, o regresso de uma Europa de Nações divididas de novo por fronteiras, fará as delícias de muitos, mas significará para nós Portugueses ficarmos limitados a viver à medida do que uma comunidade pequena, pobre e envelhecida tem para partilhar. Contaremos com certeza com o turismo, mas o fantasma das possíveis invasões castelhanas acabará por regressar. Nesse quadro político, os conceitos de esquerda e direita deixarão de fazer sentido. Teremos o Partido russo, o Partido do Trump e o Partido chinês, cada um esbracejando pelas migalhas que possam cair dos patronos inspiradores.

Claro que o tsunami, como tantas vezes acontece, pode não passar de um falso alarme. Ou que, mesmo ocorrendo, resulta em estragos mais consentâneos com a resiliência humana. A guerra na Ucrânia poderia terminar com um tratado de paz, onde a Rússia, um bocadinho maior e a Ucrânia, um grande bocado mais pequena, reencontrariam o caminho da convivência. E porque não pensar que Trump, com o ego confortado pelo fogo de artifício com que anima as redes sociais, passa a assumir uma atitude mais paternalista e conciliadora. E quanto à Europa, milagre dos milagres, será que não acabarão por surgir, inesperadamente, líderes respeitados pelos seus concidadãos, que conseguem, mais uma vez à 23ª hora, arquitectar uma solução que beneficia todos e onde se desmontam as escaramuças nacionais? Quem acredita?

Sabendo que a Europa se pode desmoronar em breve, ao olhar para a ambição declarada pela Comissão Europeia, em melhorar a competitividade económica, promover a defesa militar e conseguir a descarbonização, pensamos inevitavelmente nos projectos de Nova Lisboa em 1975. Resta esperar que o futuro pode mesmo vir a desmentir os cenários apocalípticos aqui enunciados para a Europa. Em breve saberemos.