Tomando nota de recentes declarações de políticos – devidamente amplificadas por jornalistas atentos aos disparates que enchem tempos de antena – os Portugueses do Séc. XXI terão não só de se mortificar, autoflagelar e pedir perdão pelo comportamento dos seus antepassados de há dois, três e quatro séculos, como terão também de pagar com o trabalho de hoje, hipotecando, simultaneamente, o esforço futuro dos seus filhos e netos, para reparar o mal infligido. Esta afirmação é, porém, uma manifestação de desconexão mental da realidade, que pelos vistos entusiasma masoquistas internos e deleita cínicos sádicos externos. Urge, pois, colocar um travão neste enorme disparate, sob pena de estarmos a contribuir para empurrar mais o comboio em que nos encontramos em direcção ao abismo.

De facto, é imprescindível olhar para este tema numa dupla perspectiva: a da História e a dos actuais interesses que se movem na política internacional.

A Perspectiva da História

A escravatura não foi inventada pelos colonialistas ocidentais. Sempre existiram homens que impõem a outros a situação de serventia e uma condição de oficial inferioridade. A escravatura é, infelizmente, uma realidade que vem do início dos tempos. Mesmo em civilizações antigas sofisticadas, como foram as cidades gregas e o Império Romano, uma parte significativa da população era escrava, não gozava de direitos e existia apenas para servir os seus donos. Na Esparta antiga, o número de escravos relativamente ao total da sociedade era tão elevado, que os espartanos viviam no sobressalto permanente de revoltas. Ora hoje, a dois mil e quinhentos anos de distância, torna-se difícil descobrir quem são os descendentes dos gregos ou dos romanos a quem deve ser exigida penitência e reparação e quem são e onde estarão os recipientes dessas indemnizações. Procurá-los, seria um desafio deveras difícil.

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Desaparecida a Grécia e Roma, foram muçulmanos os impérios que se seguiram, ocupando vastíssimas áreas desde o Médio Oriente, o Norte de África, até à Península Ibérica. Ora, estas sociedades eram grandes consumidoras de escravos e abasteciam-se activamente com os fornecimentos que chegavam de norte, do sul, de este e de oeste. Entre os maiores fornecedores de escravos para os Califados, estavam os Vikings que desciam das paisagens gélidas do norte em direcção a Damasco e Bagdad, percorrendo o que é hoje a Rússia e a Ucrânia e recolhendo escravos pelo caminho. Será que Putin é descendente de escravos? E se o for, fará sentido solicitar ao Fundo Soberano da Noruega uma pensão pecuniária para Vladimir Putin? Acresce que, como para os potentados muçulmanos o fornecimento de escravos “eslavos” não era de todo suficiente, os pequenos Reinos cristãos da Europa eram frequentemente vítimas de incursões que raptavam pessoas para serem escravizadas nos domínios muçulmanos. A este número, acresciam as que acabavam por ter a mesma sorte por iniciativa dos seus concidadãos, quando as consideravam como elementos indesejáveis. O comércio de escravos com origem na Europa em direcção ao Oriente era também assegurado por comerciantes das cidades italianas, em especial os da Sereníssima e Belíssima República Veneziana. Vale a pena imaginar também aqui um mecanismo de reparação? E solicitá-lo a quem? Aos iraquianos, sírios e venezianos, que usaram, abusaram e estropiaram europeus durante séculos, ou às cidades europeias que vendiam os seus? Nestas vagas de escravizados, guarda Portugal uma amarga memória do que resultou do desastre de Alcácer-Quibir e dos milhares de escravos que lá foram deixados. Porque não avaliar um pedido de reparações por parte de Portugal a Marrocos? Terá havido prescrição?

É verdade que, quando agora se fala de escravatura, se está normalmente a aludir ao comércio de escravos africanos levados para as plantações de colonos brancos nas Américas do Norte e do Sul, actividade onde estiveram envolvidos portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, no fundo as nações que colonizaram o mundo entre os Séc. XVI e XX. E se actualmente olhamos horrorizados para esta realidade, na altura tratava-se de um comércio perfeitamente legal, e como tal regulado pelas autoridades públicas. De facto, tratava-se de uma actividade que se desenvolvia em concorrência aberta e que estava sujeita às leis da oferta e da procura de mão-de-obra, com investidores a financiar expedições e com transportadores (os negreiros) a satisfazer a necessidade de mão-de-obra (barata) por parte dos fazendeiros das Américas.

À luz dos valores actuais, esta foi, sem qualquer sombra de dúvida, uma página negra da história da humanidade. Mas cuidado com os justiceiros do momento, que imaginam esta realidade como mero produto da maldade dos brancos, cujos herdeiros devem ser chamados a penitenciar-se espiritual e financeiramente, pagando pelo sofrimento e prejuízos que impuseram a todas essas pessoas. E aí é que as coisas se complicam porque, se os comerciantes que vendiam os escravos nas Américas eram brancos, os fornecedores desses escravos eram negros. Os negreiros não andavam Africa dentro à caça de escravos; limitavam-se a comprá-los aos fornecedores negros, que, esses sim, pilhavam os povos vizinhos ou aprisionavam os inimigos internos para os venderem aos comerciantes europeus.

O que foi todo este comércio – que se prolongou até meados do Séc. XIX – está bem documentado, contrariamente ao dos Vikings e de tantos outros. Os comerciantes europeus levavam os seus barcos a percorrer a costa africana, contactando, aqui e ali, com fornecedores negros ocasionais. Contudo, o verdadeiro mercado grossista era feito à volta de fortificações no Golfo da Guiné que os Portugueses levantaram na Mina e em Ajudá, mas que, a partir do Séc. XVII, passaram a ser detidas por holandeses e ingleses. E era sob alguma protecção militar dessas guarnições ocidentais, que se organizavam verdadeiras grandes feiras de escravos em determinadas épocas do ano. Os compradores eram brancos, mas os vendedores/expositores eram os potentados africanos locais, que apresentavam o seu produto à melhor oferta, mantendo relações estáveis, quase diplomáticas, com os principais comerciantes europeus. Vale a pena sublinhar que nessas grandes feiras, a autoridade não era da responsabilidade dos europeus, mas era garantida pelos Reis autóctones.

Ao concordar com um sistema de reparações para o que foi este período tenebroso de migrações forçadas, haveria pois que ter o cuidado de identificar os descendentes desses fornecedores, sem os quais não teriam existido escravos vendidos do outro lado do Atlântico. Porque esses foram os dinamizadores e primeiros beneficiários económicos de uma actividade que agora dizem abominar.

Esta página da nossa História que hoje nos repulsa vai ser encerrada pela força da consciência humanista das nossas próprias sociedades ocidentais. Movimentos de opinião iniciados em Inglaterra, lutaram, nos finais do Séc. XVIII e durante o Séc. XIX, pela proibição do comércio de escravos. A escravatura e o seu comércio acabaram, não porque o Ocidente colonizador tenha sido vencido por um novo Império, mas por vontade própria da nossa sociedade civil, que cresceu o suficiente para fazer valer os direitos inerentes à vida humana, independentemente da raça.

A Perspectiva da Política

Na realidade, o tema da culpa e das reparações é hoje uma componente ideológica da batalha política que a Rússia e a China empreendem na procura pela liderança global do planeta. E mesmo concordando que crimes foram cometidos, é simplesmente impossível encontrar uma forma racional de identificar hoje culpados e vítimas por situações que ocorreram há séculos e, acima disto, ainda quantificar a respectiva responsabilidade e prejuízo. O Ocidente não inventou a escravatura nem inventou o racismo. As sociedades ocidentais praticaram, sim, no passado, o racismo e a escravatura, mas apresentam-se hoje como sociedades abertas, democráticas, respeitadoras dos direitos humanos e generosas para com a adversidade que se possa abater sobre as pessoas em qualquer lugar no mundo. São, pois, sociedades que se baseiam em valores morais e no sentido da responsabilidade, valores que, por regra, faltam em absoluto a quem neste momento acusa o Ocidente de malvadez e exige a sua punição exemplar.

Estamos perante um oportunístico encontro de interesses, disfarçado sob a forma de ajuste de contas entre as Nações que foram colonizadas e os seus antigos colonizadores. Movimentos como o Global South, procuram, aparentemente, a justiça para os espoliados de há séculos, mas na realidade o que fazem é oferecer-se como um instrumento do jogo geoestratégico, visando enfraquecer o Ocidente e esperando obter ganhos dos promitentes novos suseranos. E quando se ouve políticos como Lula, exigindo a Portugal que materialize contrição com pagamentos, faria sentido verificar se a linhagem familiar de Lula não terá contado com fazendeiros compradores e utilizadores de mão-de-obra escrava. Porque, assim sendo, ele deveria ser incluído no grupo dos que devem uma contribuição pessoal, para reparação de erros cometidos pelos seus antepassados…

Aos que pretendem a humilhação do Ocidente, juntam-se os idiotas úteis da freguesia que sentem ingenuamente a necessidade de bater no peito e mostrar arrependimento e contrição por crimes que afinal não cometeram. Seria bem melhor que contribuíssem para resolver os problemas que nos afligem, hoje, a nós e ao resto da humanidade.

O sentimento de culpa que se quer fazer atribuir às antigas potências coloniais é hoje absolutamente despropositado.  De facto, como refere Douglas Murray, onde está o racismo nos países do Ocidente, quando na India é impossível a um não-indiano subir ao topo da política e na China a um branco, ou aos seus descendentes, entrar nas camadas superiores do Governo? Pelo contrário, a América elegeu, por duas vezes, um Presidente negro, filho de um pai nascido no Quénia e a actual Vice-Presidente é filha de emigrantes da Índia e da Jamaica. E o que dizer do Governo do Reino Unido que conta com a presença de filhos de emigrantes do Quénia, Tanzânia, Paquistão, Uganda e Gana e mesmo um nascido na Índia? Todos sabemos que em nenhum país da Ásia ou da África existem estas possibilidades.

Reparações? Desde quando? Até quando? Para quem? De quem? A sério?

Vamos apurar o que se passou em Esparta e em Roma, ou recuamos até à idade da pedra?

Talvez ter presente que a verdadeira reparação do passado, vem do que formos capazes de projectar no futuro.

É tempo de ignorar as lamentações e trabalhar para o bem de todos nós.