Desde que 2024 começou já perdoei algumas pessoas por desejarem que fosse feliz. Haverá desejo mais satanicamente ambíguo do que o da felicidade? Talvez o desejo de felicidade moderno tenha substituído o velhinho pedido pela bênção. Ser feliz soa certamente menos pesado do que ser abençoado, especialmente numa terra e num tempo em que estas categorias religiosas caíram em desuso.
Há uns tempos vi um programa de televisão em que os concorrentes eram colocados aos pares em lugares paradisíacos. Já se está mesmo a ver o objectivo em causa naquela competição: os concorrentes tinham de ver se conseguiam ser acasaladamente felizes. Em função do sucesso combinado que atingissem, ganhavam ou perdiam. No que era visto como a possibilidade de um sonho, eu só vi uma tremenda punição: já não bastava a pressão para ser feliz (e em dupla), ela era também uma competição televisivamente transmitida.
Num dos episódios, um dos concorrentes recebia a carta de um familiar, lá longe na normalidade não-paradisíaca e não-televisivamente-transmitida. Esse familiar desejava ao concorrente que “fosse feliz e atingisse todos os objectivos a que se tinha proposto”. O concorrente leu e chorou, aparentemente tocado pela beleza das palavras que recebera. Mas, novamente, no que ele lera bênção, eu só consegui perceber maldição: haverá destino mais perigoso do que atingirmos tudo o que desejamos?
Para que seja bom atingirmos o que desejamos precisamos de ter a certeza de que o que desejamos é bom também. Eu, que frequentemente sou apanhado a desejar coisas que podem não ser tão boas assim, receio. Receio, por isso, da felicidade que desejo hoje porque já desejei felicidades ontem das quais oportunamente me vi livre. Ser feliz é um caminho que tem muito que se lhe diga porque, depois de o termos trilhado, já o trocámos por outros que nos pareceram ainda melhores. Não sou contra ser feliz mas sou a favor de poder não ser feliz hoje de acordo com o que me parecia ontem.
O leitor mais impaciente pode perguntar em que tipo de felicidade acreditarei eu, então. Acredito sobretudo na felicidade retroactiva. A felicidade retroactiva é aquela que, quando muito, acontece mais circunstancialmente do que como uma causa. Suspeito que é à conta de termos a felicidade como uma causa que registamos valores assinaláveis de ansiedade e angústia. A felicidade circunstancial, ao menos, tende a acontecer “apesar de” e não “porque”. Se a felicidade for o que acontece causalmente, o mundo pode tornar-se uma procissão cruel que se divide implacavelmente entre o desfile dos merecedores de felicidade e dos imerecedores dela. É quando a felicidade acontece apesar de nós que o causalmente infeliz se pode tornar no casualmente feliz.
Por outro lado, a felicidade retroactiva, como o nome indica, funciona ao contrário. A felicidade retroactiva pode mesmo tornar o infeliz feliz. Quem explicou isto melhor, claro está, foi Jesus. Uma vez Jesus enumerou uma lista de características meio infelizes: a pobreza, a tristeza, a mansidão, a fome, a misericórdia, a ausência de esquemas, não ganhar guerras, e a perseguição. À medida que as somava, acrescentava que a pessoa assim, pobre, triste, mansa, esfomeada, misericordiosa, sem esquemas, perdedora de conflitos, perseguida, essa pessoa, sim, era a feliz. Portanto, a pessoa feliz era provavelmente aquela que, aos olhos da maioria, teria tudo para ser vista como a infeliz.
Se a felicidade promovida por Jesus parece infeliz para a maioria, tenho medo quando a maioria deseja que eu seja feliz.