Desde os terríveis ataques do Hamas em território israelita de 7 de outubro, o Médio Oriente está “à beira do abismo”, advertiu o Secretário-geral da ONU, António Guterres, voltando a ser palco de uma insuportável espiral de violência, cujas vítimas imediatas são os civis. Aos atos de terror do Hamas, com o assassinato e o rapto de civis, seguiu-se uma resposta militar maciça de Israel, sustentada no seu direito de se defender dos ataques sofridos. O conflito tem conhecido um nível de violência muito alto, resultando na morte de mais de 10 000 pessoas (sensivelmente 9 000 palestinianos e 1 400 israelitas), conforme um balanço cada vez mais pesado. Perante este novo episódio de violência entre Israel e a Palestina, a ONU tem sido o palco onde se jogam os interesses divergentes dos Estados da comunidade internacional.
O bloqueio do Conselho de Segurança
O Conselho de Segurança é o órgão mandatado pela ONU para garantir a manutenção da paz e da segurança internacionais. O conflito entre Israel e a Palestina está na ordem do dia deste órgão desde 1948, tendo sido aprovadas mais de uma centena de resoluções. No caso do conflito que lavra atualmente em Gaza – e à semelhança do conflito desencadeado pela Rússia contra a Ucrânia em fevereiro de 2022 – o Conselho é incapaz de cumprir o seu mandato, ficando paralisado pelo veto detido pelos cinco Estados membros permanentes (China, Estados Unidos da América, Federação Russa, França e Reino Unido).
Assim aconteceu em todas as reuniões do Conselho com vista a responder à emergência humanitária na Faixa de Gaza. Das quatro propostas de um texto apresentadas no Conselho depois do 7 de outubro, todas foram rejeitadas, os votos realçando as velhas inimizades que marcaram o mundo no período da Guerra Fria. Esta paralisia do Conselho, na prática, impede que esse seja um agente ativo na superação desta crise que se arrasta há 75 anos.
A resolução da Assembleia Geral
Perante o bloqueio do Conselho de Segurança, a Assembleia Geral representa a réstia de esperança para a população de Gaza. Além da sua decisão, em dezembro de 2022, de pedir um parecer consultivo ao Tribunal Internacional de Justiça sobre a legalidade da prolongada ocupação israelita iniciada em 1967, é ao abrigo do mandato “Unidos pela Paz” – inaugurado pela Resolução 377 (1950) e na qual se prevê que a Assembleia pode agir no caso de uma paralisação do Conselho –, a 27 de outubro, que o órgão plenário da ONU adotou uma resolução tendo em vista a proteção da população civil de Gaza. Esta resolução surge depois de António Guterres ter condenado inequivocamente os ataques perpetrados pelo Hamas a 7 de outubro, mas sublinhando a situação de “ocupação” a que o povo palestiniano tem vindo a ser sujeito nas últimas décadas.
A resolução intitulada “Proteção dos civis e cumprimento das obrigações jurídicas e humanitárias” foi adotada por uma maioria significativa de 120 Estados em 193 Estados Membros da ONU. Embora não vinculativa, tem uma ressonância política e simbólica forte.
A votação desta resolução teve lugar no segundo dia da 10.ª sessão extraordinária de emergência da Assembleia Geral sobre a guerra israelo-palestiniana. No essencial, a resolução apela a “uma trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada, conducente à cessação das hostilidades” e reafirma que “uma resolução duradoura do conflito israelo-palestiniano só pode ser alcançada por meios pacíficos, com base nas resoluções pertinentes dos órgãos das Nações Unidas, em conformidade com o direito internacional e com base na solução de dois Estados”.
Condena os atos contra a população civil, seja ela qual for, e insta ao respeito dos princípios basilares do direito internacional humanitário, nomeadamente os “princípios da distinção, necessidade, proporcionalidade e precaução na condução das hostilidades”. Apela à libertação dos cerca de 200 reféns e alerta para a situação de grande vulnerabilidade da população civil e pelo imperativo de não privar os civis dos bens essenciais à sua sobrevivência, tais como água, alimentos, medicamentos ou combustível. Neste ponto, destaca o papel crucial do Egipto, o que pode explicar a recente decisão de abertura da fronteira em Rafah para permitir a saída de feridos graves e pessoas com dupla nacionalidade.
Um conflito fraturante
Esta resolução não reuniu o consenso e as tensões políticas vieram ao de cima. É interessante notar que, longe de apresentar uma frente unida como no contexto da guerra na Ucrânia, dos 27 Estados Membros da União Europeia, 9 votaram a favor (entre os quais Portugal), 3 votaram contra (a Áustria, a Chéquia e a Croácia) e 18 abstiveram-se. Terá contribuído para a abstenção de muitos Estados a rejeição da proposta de emenda do Canadá de incluir uma condenação inequívoca dos ataques do Hamas em Israel e da tomada de reféns.
Outros 14 Estados votaram contra a resolução da Assembleia Geral, dentre eles Israel e os Estados Unidos da América. Os Estados Unidos sustentaram a sua posição na falta de menção ao Hamas como autor dos ataques de 7 de outubro. Israel, por seu lado, rejeitou veementemente a resolução, acusando a ONU de falta de legitimidade e reiterando que o seu país continuará empenhado em defender-se e erradicar o Hamas.
Embora a Palestina, na sua qualidade de Estado observador não membro da ONU, não tenha participado no voto, ela pediu à comunidade internacional que se lembrasse da situação inextricável dos palestinianos em Gaza que não têm para onde fugir.
Perante o risco de conflagração regional, e enquanto assistimos com assombro às imagens que nos chegam de uma Gaza destruída, a ONU continua ativa no terreno, nomeadamente através do Coordenador Especial das Nações Unidas para o Processo de Paz no Médio Oriente e da Organização de Supervisão de Trégua das Nações Unidas, e um inquérito está em curso no Tribunal Penal Internacional, que poderá englobar as atuais violações.
Recordar as regras fundamentais do direito internacional, como o faz a resolução da Assembleia Geral, é uma necessidade política e moral, como o é a urgente aplicação de um cessar-fogo para que não desapareça a possibilidade de um dia se celebrar um tratado de paz.