O golpe de Estado de 26 de julho de 2023 no Níger, que depôs o presidente democraticamente eleito em 2021 Mohamed Bazoum, tem conhecido desenvolvimentos que colocam em cheque as instituições africanas, a diplomacia internacional e a relação dos países do Sahel com as potências ocidentais. A ordem dada em 25 de agosto pelos militares no poder ao embaixador francês Sylvain Itté para abandonar o país é sintomática de uma mudança na correlação de forças na África Ocidental. Por outro lado, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) tem sido extremamente firme na sua posição em relação à junta militar que tomou o poder, decretando sanções e ameaçando com uma intervenção militar para restabelecer a ordem constitucional, embora tal posição tenha tido até agora um impacto muito limitado.

As instituições regionais africanas: um ‘tigre de papel’?

Com a deposição e o encarceramento do presidente do Níger, as organizações regionais africanas condenaram a mudança inconstitucional de regime e apelaram à restauração da legalidade democrática. A CEDEAO, organização que congrega 15 Estados da África Ocidental, incluindo o Níger, apelou à libertação do presidente Bazoum e à renúncia dos golpistas às suas aspirações de mudança inconstitucional de regime. O comunicado da CEDEAO de 30 de julho aponta aquelas que serão as linhas de atuação da organização para gerir a crise no Níger: o reconhecimento do presidente Bazoum como presidente legítimo, a possibilidade de recorrer à força para repor a ordem democrática e o decretar de sanções para isolar o Níger (encerramento de fronteiras, suspensão de trocas comerciais, congelamento de ativos financeiros em bancos de países membros, etc.).

Com o término do prazo determinado pela CEDEAO sem que tenha sido libertado o presidente nem reconduzido ao poder, a organização anunciou considerar o recurso à força. Tal foi decidido na cimeira da CEDEAO de 10 de agosto, onde, entre outros, optou pela ativação do contingente militar de intervenção rápida, bem como apelou ao apoio de todos os Estados membros e das instituições internacionais – a União Africana e as Nações Unidas – para uma resolução rápida da instabilidade no Níger. Em resposta, a junta militar anunciou que, caso ocorresse uma intervenção militar externa, o presidente deposto seria executado. Apesar destes desenvolvimentos, e do apoio de vários Estados da CEDEAO à intervenção militar, a organização tem procurado privilegiar os canais diplomáticos em detrimento do uso da força. Numa conferência de imprensa que teve lugar a 25 de agosto, o presidente da Comissão da CEDEAO, Omar Alieu Touray, referiu estar empenhado em encetar todas as opções diplomáticas disponíveis, sem descurar a possibilidade do uso da força, sendo que esta se justifica com o intuito de evitar o “efeito de contágio” de sucessivos golpes de Estado na região do Sahel.

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Por seu turno, a União Africana tem sido mais cautelosa. Num primeiro momento, condenou veementemente o golpe militar, mas apenas a 22 de agosto anunciou a sua decisão de suspender o Níger. É importante notar que é um dos objetivos da União Africana a promoção da democracia e da boa governação e um princípio fundamental plasmado no seu tratado fundacional a rejeição de mudanças inconstitucionais de governos (artigo 4, alínea p, do Ato Constitutivo da União Africana). O Conselho de Paz e Segurança da União Africana, órgão dedicado às matérias de paz e segurança no continente africano, num comunicado datado de 14 de agosto, apoiou os esforços da CEDEAO no seu empenhamento contínuo na restauração da ordem constitucional por meios diplomáticos. Rejeitou ainda qualquer interferência externa, em particular de empresas militares privadas, fazendo respeitar a Convenção para a Eliminação do Mercenarismo em África de 1977.

Uma crescente instabilidade política no Sahel

A instabilidade política tem marcado a região do Sahel, com maior incidência nas últimas duas décadas. O conflito armado na Líbia, decorrente do esmagamento da revolução árabe, conduziu a um efeito em cascata na região. O Mali foi alvo de uma insurgência armada em 2012 que afetaria o país nos anos subsequentes. De resto, o Mali sofreu no espaço de nove meses dois golpes de Estado (em 2020 e 2021, respetivamente). Sudão, Chade, Burkina Faso e Guiné são outros exemplos recentes de golpes de Estado bem-sucedidos na região (entre outros que não tiveram sucesso).

O que explica esta instabilidade política? Fatores endógenos e externos ajudam a perceber parte do problema. Por um lado, a pobreza e os efeitos das alterações climáticas (entre os quais a desertificação e a seca) são agravados por instituições frágeis, um déficit de governação e expectativas defraudadas da população, fatores que alimentam uma conjuntura política instável. Por outro lado, o Sahel é um tabuleiro onde as potências internacionais – Rússia, Estados Unidos da América e alguns países europeus, com particular interesse da França – atuam consoante os seus interesses estratégicos, inclusive através da proliferação de empresas militares privadas, como o Grupo Wagner. É pouco provável que a decapitação deste grupo de mercenários signifique uma melhoria dos índices democráticos na região, cujas falhas são exploradas por grupos terroristas (como Al-Qaeda ou Boko Haram). Esta só se fará por um robustecimento das instituições políticas, a promoção de uma cultura democrática, mas, sobretudo, pela criação de oportunidades de desenvolvimento económico e social.