Com a pandemia em curso, temos um governo condenado a alguma impopularidade se impuser medidas mais assertivas e duras ou se for percebido como negligente. Não é fácil. Pior ainda porque tem eleições que coincidirão com o pico invernal de infeções respiratórias e a epidemiologia também poderá ditar o sentido do voto. Neste contexto é muito fácil disparatar. Fácil e perigoso.

Medidas de quarentena, seguramente mais consequentes embora comprometedoras da indústria do divertimento, restauração e turismo, serão sentidas como mais um abuso às liberdades de uma população, cansada e desesperada, numa batalha que sente perder sempre que lhe dizem que está a ganhar. Mais ligeireza, o caminho que é preferido pelos políticos no imediato, poderá custar aumento de procura e ocupação de hospitais, agravando a situação já crítica do SNS e, vendo bem, de todo o sistema de saúde em Portugal. A mortalidade virá depois.

Para já, nas análises preliminares que podem ser feitas, deve realçar-se a inevitável perda de capacidade assistencial de todas as doenças que não a COVID-19, por sinal a maioria da patologia humana que não deixou de grassar, a dificuldade de conciliar a mensagem na medida pretendida para a adesão da população às medidas adequadas, alguma precipitação na adoção de intervenções preventivas e supostamente curativas e a capacidade de resposta tecnológica no desenvolvimento de medicamentos, por vezes imperfeitos, nomeadamente de vacinas. Acrescento que outras lições importantes desta pandemia foram a de que os mecanismos de avaliação de eficácia e risco de fármacos foram postos à prova e algumas vezes falharam, tal como ficou demonstrado como é difícil decidir com escassez de dados e sob grande pressão da opinião pública. Note-se que estas conclusões são aplicáveis a todo o mundo. E, por que as pandemias são do mundo inteiro, tal como a saúde é de todos, esta pandemia também serviu para mostrar como as desigualdades em saúde são um dos maiores problemas sociais ao nível de cada país e do mundo inteiro. As desigualdades são uma ameaça ao bem-estar de todos, incluindo o de pessoas e países que se acham protegidos pela sua suposta riqueza.

Em todo lado, no manejo desta pandemia que foi provocada por um vírus desconhecido, foi fácil cometer erros. No caso de Portugal, não que isso também tenha sido exclusivo nacional, o nosso maior problema tem sido de comunicação. Vejamos alguns exemplos de erros que caem na esfera do disparate.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

1 Os homens precisam de heróis, de modelos que possam servir de exemplo e que nos garantam a tranquilidade de um falso sentido de proteção.  Nos momentos de aflição isso é ainda mais notório. O governo inventou um, porventura sem a noção do absurdo que estava a criar. Precisava de ter um “culpado” para o que pudesse correr menos mal na vacinação e não contou que se as coisas corressem bem, como seria desejável, tendo uma figura cheia de carisma, emanando autoridade e boa figura, criaria um concorrente no espaço mediático.

Nem o governo contava que a personagem criada pelo governo e que o próprio soube inventar com inteligência – o camuflado ficará nas antologias da comunicação não verbal em crises –ficasse, andasse por aí, à espera de toda e qualquer oportunidade para nos lembrar que existe, repetindo que não faz falta para nos recordar a falta que acha que faz.

O êxito do programa de vacinação não se deve apenas ao Vice-Almirante, desconfio até que ele foi o menos responsável do que correu bem. Lamento que outros, os mais interessados, aqueles que na equipa dele penaram e muito, os autarcas que foram peça fundamental em tudo isto, os profissionais de saúde que deram o coiro e até as autoridades de saúde que este senhor tenta amesquinhar, nada digam. E não vale a pena que o nosso Vice-Almirante ande por aí a dizer que o sucesso foi de muita gente quando insiste em aparecer para promoção própria. Se está tão preocupado com a equipa que comandou e a quem a visibilidade falta, não vá, faça-se representar por um daqueles a quem o programa de vacinação deve mesmo o seu sucesso, no terreno, junto às pessoas.

Vivemos disto, de heróis fictícios que se vão criando para atenuar o nosso descontentamento. O cúmulo do que escrevi atrás será agora exemplificado. Até a Academia teve de se juntar à corrente da superficial avaliação popular. Não conheço a produção intelectual, científica ou artística, do Vice-Almirante e corro o risco de ser tremendamente injusto no meu comentário seguinte. Mas entre Vargas Llosa e Gouveia e Melo julgo que deveria haver alguma diferença. Na página introdutória do sítio da Universidade Nova de Lisboa pode ler-se:

Entre as personalidades que receberam o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade NOVA de Lisboa, encontram-se Paul Samuelson, Sir Nevill F. Mott (Prémio Nobel da Física 1977), Jacques Delors, Willem Duisenberg, Robert Huber (Prémio Nobel da Química 1988), Robert Mundell (Prémio Nobel da Economia 1999), Mary Robinson, Calvet de Magalhães, Edmund Phelps (Prémio Nobel da Economia 2006), Kofi Annan (Prémio Nobel da Paz 2001) e Sua Alteza Shah Karim al-Hussaini, Príncipe Aga Khan…

e, brevemente, Gouveia e Melo. Na lista já extensa de personalidades a quem já foi atribuído o grau não há uma que me fizesse franzir o sobrolho. Ir agora acrescentar um dos organizadores de um programa de vacinação num país de modesta dimensão e com um sistema de saúde razoável parece-me muito desajustado. Mas devo ser só eu, já que outros, talvez a maioria, acharão natural este abuso ao bom senso e bom gosto.

Mas pior do que terem caído no erro de endeusarem o Vice-Almirante foi terem desvalorizado automaticamente o sue sucessor, um anónimo Coronel que está a fazer o melhor que pode e sabe. Se o início da terceira fase de vacinação não correu bem, sendo que o impacto na pandemia deste “não correr bem” é ainda muito incerto, isso não pode ser atribuído ao “afastamento” do mítico navegador em terra. Se pensarmos bem, até seria chocante que ao se ter retirado o comandante não tenha ficado uma estrutura montada que não dependesse dele. O ministério fez mal em acabar com o mandato da Task Force, porque a Force não era o Vice-Almirante – de quem se queriam livrar – e a Task, pelos vistos não estava concluída.

2 Tudo o que sucedeu nos últimos dias sobre a vacinação de crianças é paradigmático da falta de preparação do Ministério da Saúde. Não sabem nada e não querem aprender sobre comunicação em saúde. Começaram por dizer que não divulgavam os pareceres técnicos, depois seria divulgada uma nota técnica, a seguir já era o parecer da comissão que seria publicado e, finalmente, irão divulgar tudo, incluindo os pareceres de outras entidades. Sempre a reboque de comentários em jornais, notícias ocasionais e declarações políticas. Já muito se escreveu sobre o tema e não vale a pena repetir o que foi dito e escrito. Um disparate monumental quando precisávamos de confiança. Deixaram a ideia de que a melhor evidência disponível nem sempre tem servido para nortear as decisões, o que é generalizadamente falso, sendo que é verdadeira a necessidade de decidir com poucos dados num contexto da novidade que esta pandemia tem. São poucos, são o que há e os juízos feitos sobre a informação existente não pode ser secreta. Permitiram que se criasse a ideia, falsa, de que haveria uma obrigatoriedade de vacinação de crianças. Não há. Mas há a necessidade de transferir, como acontece sempre em Pediatria, a decisão para os pais. E estes não podem tomar uma decisão acerca da saúde dos seus filhos sem a consciência de que estão a decidir bem, sem reservas, sem o conforto do conselho médico que também só pode ser dado se todos os pareceres estiverem disponíveis e forem públicos. Em saúde não pode haver ciência secreta.

Estamos nisto. Como estamos nas incongruências sobre o uso de máscaras no bar da discoteca ou na pista de dança, na rua, nas lojas pequenas versus lojas grandes. Uma coisa é não terem certezas e decidirem, na falta de melhor suporte, baseados no bom senso. Outra coisa é a confusão de contradições em que nos querem mergulhar.

Tenham cuidado e evitem emaranhar-se na discussão sobre vacinação obrigatória. Decidiram bem sobre a obrigatoriedade de testes negativos para entrar em Portugal – recentemente vim do estrangeiro e tudo correu sem sobressaltos. Quanto a vacinas, podendo haver um quadro de exceções, o ideal seria a obrigatoriedade de vacinação para entrar num País da UE. Vacinas obrigatórias para entrar em espaços públicos. Sim, mas… precisa de ponderação e acompanhamento.

3 Notem que os disparates não se ficam pelas nossas autoridades de saúde. A decisão de não usar referência geográfica na nomenclatura dos vírus SARS-Cov-2 para “evitar ofender qualquer grupo cultural, social, nacional, regional, profissional ou étnico” é só estúpida.

Composição da vacina da gripe sazonal 2021 recomendada pela FDA:

an A/Wisconsin/588/2019 (H1N1) pdm09-like virus; an A/Cambodia/e0826360/2020 (H3N2)-like virus; a B/Washington/02/2019- like virus (B/Victoria lineage); a B/Phuket/3073/2013-like virus (B/Yamagata lineage).

Imaginem o ar ofendido de americanos, cambodjanos e tailandeses!!

E uma das recomendações da OMS, para o hemisfério Sul em 2022, é:

an A/Wisconsin/588/2019 (H1N1)pdm09-like virus; an A/Darwin/6/2021 (H3N2)-like virus; a B/Austria/1359417/2021 (B/Victoria lineage)-like virus; and a B/Phuket/3073/2013 (B/Yamagata lineage)-like virus.

Australianos e austríacos, até espumaram!

Para já não falar da estigmatizante nomenclatura das variantes de hemoglobina ou de outras doenças genéticas, p.e. da coagulação ou do sistema nervoso central a quem se deu o nome da família onde a anomalia genética foi detetada pela primeira vez. O bom senso está a perder-se em todo o lado.

Mantenho a minha convicção, sustentada na história de sobrevivência da espécie humana sobre epidemias e pandemias, necessariamente com vítimas, de que isto vai passar, já está a passar. Urge melhorar as vacinas e usar reforços, a exemplo da gripe, adaptadas aos vírus em circulação, criar medicamentos de baixo custo e administração oral para tratar os infetados, assumir que o risco de COVID (hoje é a 19, amanhã poderá ser a 23) nunca será zero e promover de forma duradoira as medidas comunitárias de prevenção de transmissão de infeções por via aérea.

Mas, porque a ameaça está lá e nem todos a reconhecem, há mais agentes patogénicos e ameaças que podemos prever que não devemos esquecer. Devemos confiar em nós, naquilo que podemos fazer por cada um e pelos outros, não desprezar os que têm menos, acreditar na nossa capacidade de julgar e decidir, exigir informação, procurar ler e aprender, e desconfiar de pessoas providenciais.