Quando tinha 17 anos achava-me comunista. Orgulhava-me em dizê-lo. A minha avó Paula tinha um companheiro que era mesmo militante e recordo-me de visitar a família, lá na Marinha Grande, e envaidecer-me da luta operária na qual uns quantos dos meus se tinham envolvido ao longo de décadas. Agradava-me ser conta o sistema e o ambiente do punk/hardcore onde me tinha metido ajudava. Como era também um jovem evangélico, as letras da minha banda misturavam religião com uma linguagem à PSR (o Bloco de esquerda ainda estava para nascer). A minha vida era uma tentativa de baptizar os “Rage Against The Machine”.

A primeira vez que votei foi CDU. Eram umas autárquicas e na Amadora ainda prevalecia aquele cliché de que os comunistas nas câmaras eram uma aposta segura. Curiosamente, e de acordo com a minha memória, os comunistas perderam nesse ano para o PS. Pouco tempo depois entrei na Universidade, na FCSH da Avenida de Berna, e num ambiente muito à esquerda sentia-me no lugar certo. Não nego, no entanto, que foi uma questão marxista que me fez começar a ganhar uma certa antipatia pelos marxistas lá: sentia que o facto de vir dos subúrbios me distinguia dos outros, mais urbanos e sofisticados do que eu—a luta de classes era mais palpável na academia do que no secundário.

Precisamente por Marx dar espaço no seu pensamento às separações que o capital provoca entre as pessoas, vi-me distante daqueles que, acreditando nele, se afastavam de mim. À medida que o tempo foi passando, o meu marxismo, ainda muito virgem, foi fraquejando: não era só o facto de os marxistas que conhecia serem hipócritas no seu marxismo (já conhecia esse tipo de erro entre cristãos, claro), era também o facto de o marxismo, mesmo quando praticado por marxistas não-hipócritas, apresentar fraquezas que até então, no auge da minha reverência à revolução, não eram claras.

O que me afastou então do comunismo imaturo do final da minha adolescência? Marxistas não-praticantes ajudaram, sem dúvida. Mas diria que foi sobretudo a escassa espessura antropológica a desiludir-me. Fazendo uma simplificação imensa, falta à tradição comunista uma dimensão ontológica, de tão encafuada que está na análise da esfera social. Na prática, os comunistas personalizam os sistemas e despersonalizam as pessoas. O problema dos comunistas, de tão supostamente empenhados que estão em ajudar as pessoas, é que deixam de acreditar que elas realmente existem.

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Comunistas descrevem a malícia do capitalismo ao mais ínfimo detalhe, como o pior Faraó que a história conheceu. Já as pessoas ficam, na literatura comunista, reduzidas ao papel que lhes sobra na lógica maniqueísta de opressor e oprimido. No final, quer os combatentes comunistas quer os seus verdugos capitalistas são fundamentalmente personagens sem ânimo, sem alma. Quando lia a literatura de esquerda desiludia-me porque os heróis não se podiam perder e os bandidos não se podiam arrepender. A grande falha do comunismo, cada vez mais evidente para mim, era o seu excesso de linearidade espiritual narrativa.

Tendo dito isto, não descobri o céu no meu abandono do comunismo. Os autores não-comunistas não são necessariamente melhores do que os comunistas. Devo até confessar que, passadas mais de duas décadas do meu afastamento da esquerda, continuam a ser as vozes dessa latitude que mais me seduzem. O que está por trás desta aparente contradição? Continuo a amar comunistas, reconheço. A sua selectividade analítica é compensada pela visceral rejeição do sistema. Sei que vou resvalar para uma simplificação semi-freudiana mas aquilo que mais anima um comunista não é a construção da utopia mas a queda da Babilónia. Aos sins do comunismo digo não mas aos seus nãos digo sim.

Até quando o comunista se esvazia conceptualmente, prescindindo de ferramentas morais e religiosas, ele re-espiritualiza-se no seu ódio contra a grande cidade do orgulho humano, edificada sobretudo à custa do capital. O melhor dos comunistas não é, neste caso, gostarem mesmo das pessoas e, por isso, defendê-las; o melhor dos comunistas é abominarem a arrogância de uma pequena minoria delas. Logo, é real a paixão que continuo a nutrir algo secretamente pelos meus autores de esquerda arcaica (socialistas no sentido contemporâneo do termo nunca me interessaram). Sinto que quando um comunista fala em sociedade sem classes, o que ele quer mesmo é o apocalipse. E aí estamos juntos no mesmo amém.