As expectativas eram altas. Há cerca de um ano atrás muitos esperavam um avanço significativo do exército ucraniano face ao exército russo e, consequentemente, uma recuperação substancial de território perdido, pelo menos na frente sul. Os mais optimistas diziam que a ofensiva seria tão tremenda que a própria Crimeia seria senão recuperada, pelo menos metida numa situação de alta tensão.

Nem todos partilhavam este optimismo, mas muitos permaneceram silenciosos, dizer que a possibilidade de sucesso da operação era fraca transformá-los-ia automaticamente em derrotistas ou, ainda pior, em propagandistas pró-russos. Assim, pelo menos na arena informacional, tudo apontava para um estilhaçamento da linha defensiva russa e para uma progressão imparável das forças ucranianas. A frieza de uma análise objectiva esteve ausente e os mais diversos comentadores dissertavam mais sobre os seus desejos do que sobre as relações de força presentes no campo de batalha.

A estratégia comunicacional da Ucrânia e dos seus aliados é hoje distinta. De um extremo chegamos a outro, o exército ucraniano estaria às portas do colapso. Esta nova narrativa vai fazendo o seu caminho há semanas, em alguns círculos podemos mesmo dizer meses. Ela tem dois objectivos principais: alarmar os aliados da Ucrânia para que estes abram – ainda mais – os cordões à bolsa e induzir a Rússia a lançar-se para fora de pé.

Quanto ao primeiro. A Alemanha, quiçá a segunda maior vítima da invasão russa, permanece reticente quanto ao envio dos badalados mísseis taurus. Já em 2024 Olaf Scholz acabou por confessar que esses mísseis não poderiam ser enviados pois necessitariam de um apoio bastante significativo do exército alemão, dando a entender que esse apoio é fornecido por britânicos – quanto aos storm shadow – e franceses – quanto aos SCALP. Claro que toda a gente minimamente informada sobre o conflito sabe que tanto os britânicos como os franceses estão bem presentes no território ucraniano a combater as tropas russas, é um segredo de Polichinelo. Todavia, o incauto (ou propositado?) comentário de Scholz reforçou essa realidade.

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Em Paris e em Londres, apesar do contributo económico muito relevante de Berlim, pensa-se que a Alemanha retém demasiados tiques neutrais ou não suficientemente alinhados com a Aliança Atlântica. A situação económica na zona euro, à qual a Alemanha contribui desmesuradamente, tem vindo a deteriorar-se. Pensar que países com vários problemas económicos, sociais, habitacionais, laborais vão dar primazia aos problemas ucranianos é um cálculo errado. Até mesmo a Polónia – país historicamente visceralmente anti-russo – se vai moderando face à evolução no terreno. Só a Lituânia e a Estónia parecem manter uma postura maximalista, mas o seu contributo não fará a diferença.

Quanto ao segundo. O entusiasmo quanto à contra-ofensiva russa apresenta elementos semelhantes àqueles do verão passado. Invertem-se os papéis, desta feita não é a Ucrânia que vai retomar a Crimeia, mas sim a Rússia que irá de Soledar até ao Dnipro! Escusado será dizer que esta narrativa é tão pueril como a do verão passado. A ideia de que os líderes militares russos vão dar um passo maior que a perna é popular na frente comunicacional, mas dificilmente surtirá os efeitos desejados no campo de batalha. Seria extremamente bizarro os russos não terem aprendido a lição com a contra-ofensiva de Kharkov, realizada ainda em 2022.

A ofensiva de 2023 ficou-se essencialmente por Rabotino. A ofensiva de 2024, porém, tem possibilidades de ir mais além. Que fará o comando russo nas semanas – ou mesmo meses – que estão à porta? As opções são variadas, apresentaremos quatro possíveis novas manobras.

A menos provável: descer da Bielorrússia rumo a Kiev. A necessidade de transportar tropas para o país aliado e envolvê-lo, novamente, na invasão parecem-nos dois elementos bastante dissuasivos. A dispersão da zona de combate é algo que os russos querem evitar, essencialmente através da criação de uma nova frente que não será contígua com as outras.

A mais provável: lançar um novo assalto ao oblast de Kharkov, com o intuito de o anexar. Pensamos que se isto ocorrer os russos poderão optar por circundar a cidade homónima, sitiando-a, concentrando-se em rodeá-la totalmente num primeiro momento; ou seja: o foco seria no oblast primeiramente, a cidade secundariamente. Isto permitiria afastar o perigo das fronteiras russas e impedir que novas incursões, como aquelas realizadas na direcção de Belgorod, voltassem a ocorrer.

A mais inovadora: abrir uma nova frente em Sumy. Este oblast, menos importante do que o de Kharkov, faz fronteira com a Federação Russa, o que reduziria significativamente o problema logístico se comparado com Kiev. A estratégia neste caso seria a de tomar a cidade de Sumy de relâmpago e proceder para sul. Posteriormente esta nova posição asfixiaria Kharkov juntamente com o oblast de Lugansk. As ofensivas vindas desde Sumy e desde Lugansk encontrar-se-iam às portas da cidade de Kharkov.

A mais arriscada: ignorar Micolaíve e fazer um assalto anfíbio à cidade de Odessa. Não cremos que a Rússia tentará voltar à margem direita do Dnipro na região de Kherson, pelo menos nos próximos quatro meses. Se muitos disseram que o caminho para Odessa passa necessariamente por Micolaíve, outros afirmaram que esse caminho pode passar pela Transnístria. E se o caminho para Odessa passar somente pelo Mar Negro?

Para lá destes quatro cenários existem outros, claro está. Existe também a possibilidade, se bem que pequena, de vermos uma combinação de dois destes cenários. A situação interna ucraniana tem vindo a degradar-se nos últimos seis meses, tanto do ponto vista civil como do militar. Porém, o apoio ocidental, principalmente o norte-americano, continua bem real, ao contrário do que pode parecer quando se acompanham os debates nacionais dos dois lados do Atlântico. Enquanto durar, a Ucrânia durará também. A imensidão do país garante-lhe uma sobrevivência, se bem que amputada, que a maior parte dos países jamais tiveram e jamais terão.

Independentemente de tudo o resto, este conflito decidir-se-á na região de Donetsk. É aí que se desenrola a acção principal – aquilo a que os militares por vezes chamam Schwerpunkt, palavra alemã que significa o ponto fulcral. E contrariamente ao que muitos pensaram o Schwerpunkt não é Kramatorsk e Slaviansk, encontra-se mais a sul, é aí que os russos – para lá do que possam fazer noutros lados – se concentrarão. A escolha de Avdeevka como alvo demonstrou que o exército russo escolheu privilegiar o centro do oblast.

Ao insucesso ucraniano do verão de 2023 junta-se a incógnita russa do verão de 2024. Uma coisa é certa, atacar comporta mais riscos do que defender; as linhas dilatam-se, o ancoramento logístico enfraquece-se, a retaguarda torna-se mais vulnerável. Caso exista uma percée – perfuração – russa será necessário saber quando parar e consolidar posições. É aí que os grandes militares se revelam, distinguindo-se dos demais. Se existirem várias tudo poderá terminar, ainda este ano.