O lamentável espectáculo de Quarta-Feira, 6 de Janeiro, no Capitólio de Washington, marcou o fim da presidência de Donald Trump com um triste balanço humano – quatro manifestantes mortos pela Polícia e um polícia morto. E interrompeu a sessão em que os congressistas ainda com dúvidas sobre resultados eleitorais iriam, pela última vez, apresentá-las. Um dia talvez venhamos a saber tudo sobre esta eleição e sobre esta grotesca intentona, com centenas de rednecks e partidários de Trump a invadirem o Capitólio, primeiro como se fosse uma pacífica visita guiada, com conivência da segurança, depois como se fosse um assalto.

Deixou já de me impressionar a hipocrisia dos comentadores e analistas que, ao longo do ano, foram vendo Antifas e BLMs a vandalizar e a destruir estátuas, a saquear lojas, a ameaçar adversários políticos, a disparar sobre polícias, silenciando ou desculpando os episódios como “a justa revolta dos injustiçados”. Agora, que já não só podem como até devem dar largas à indignação, mostram-se, previsivelmente, indignadíssimos com “a cólera dos deploráveis” e falam de sacrilégio no ataque ao “Templo da Democracia”.

Já sabemos que têm dois pesos e duas medidas e que passaram a defender com argumentos “éticos”, ainda mais simplistas e populistas que os do outro lado, a supressão da liberdade de expressão pelos idóneos e desinteressados senhores da Big Tech.

O clima de radicalização ideológica e política nos Estados Unidos atingiu um grau nunca alcançado no pós-guerra. Seria preciso recuar até às polémicas sobre a intervenção na Segunda Guerra, nas vésperas de Pearl Harbour, e mesmo aí a divisão não era tão profunda.

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O Culpado

Trump foi, desde a primeira hora da sua eleição, deslegitimado por parte do Partido Democrata, pela generalidade dos media e pela rua progressista. A “grande fraude eleitoral”, a suposta “Russian Connection”, da qual nunca houve prova, foi levada muito a sério e amplamente noticiada e explorada para ensombrar a legitimidade do novo Presidente. E veio a tentativa de Impeachment.

Aparentemente, nada disto revelava então “não-aceitação dos resultados eleitorais”, “mau perder” ou “atentado à Democracia”. Nada a ver com o que depois se passaria. Depois, sim, haveria não-aceitação, mau-perder e atentado à Democracia; depois sim, o facto de mais de metade dos eleitores republicanos desconfiarem da integridade da votação e da contagem dos votos seria já ridículo e desprovido de qualquer sentido. Os media tinham proclamado a vitória do duo Biden-Harris, muito antes de 14 de Dezembro, dia da votação do Colégio Eleitoral, e isso encerrava e selava o assunto. Não haveria nem poderia haver mais discussão.

A Esquerda sempre foi hábil na imputação de responsabilidades e o culpado da divisão na América, o único culpado, o culpado de tudo, fora, era e seria Trump e só Trump.

E não era sequer pelos seus espalhafatosos defeitos – narcisismo, falta de bases doutrinárias, agressividade, incontinência verbal – que o contestavam. Contestavam-no por ter tentado assumir, com sucesso popular, uma agenda nacional-conservadora. Agenda que anteriormente até lhe era estranha: America First, defesa da vida, combate aos fundamentalistas do globalismo, defesa de uma identidade americana e da liberdade de pensamento e de expressão. Foi isso essencialmente que o tornou o alvo de uma guerra sem quartel. Por cá, até chegaram a sugerir que se suicidasse (a eutanásia surge cada vez mais como um excelente instrumento para acabar com os deploráveis, os inúteis e os indesejáveis).

Os Anos de Trump

O balanço dos anos de Trump é misto e, nalguns pontos, foi mais o que disse que o que fez – o famoso muro México-Estados Unidos teve mais quilómetros construídos durante a Administração Obama que durante os quatro anos de Trump. Mas noutras coisas Trump pregou e cumpriu a agenda nacional-conservadora: trouxe de volta para a América muitas empresas e empregos; conteve o crescente poder chinês; obrigou os Europeus a contribuir para a Defesa; e ao contrário das administrações anteriores, não iniciou novas guerras no exterior. Internamente, defendeu as causas da vida e da família, combateu o aborto e os novos inquisidores da correcção política; trouxe mais eleitores latinos e negros para o campo republicano; nomeou juízes conservadores para o Supremo Tribunal e, no seu tempo, o desemprego atingiu mínimos históricos.

Provocação e Reacção

Mas então porquê este fim inglório, quando, com razão ou sem ela, o Presidente persistiu nas reclamações sobre a idoneidade da eleição contra a força das coisas e a ponderação dos riscos e das desvantagens que isso lhe poderia trazer e ao seu Partido? Porquê este encarniçamento que acabou por ser suicida? Porque Trump, aparentemente, não pondera, só reage aos provocadores e à provocação. E reage em excesso.

Na América – como em Portugal e mesmo na generalidade dos países europeus – a reacção popular às grandes linhas da globalização político-económica, ao ideário da correcção política e ao apoderamento da opinião e do sistema por “vanguardas” interessadas, é, por enquanto, só isso: essencialmente reactiva. É a antítese, a negação de um discurso que se quer impor como discurso único. E nesse discurso coincidem os bilionários da Big Tech, grande parte dos académicos e dos comentadores, quase todos os noticiaristas (agora autopromovidos a pensadores políticos) e os activistas Antifas e seus equivalentes europeus. Uns, porque ganham muito dinheiro, mais ainda que o que já ganhavam; outros porque impõem as suas ideias sobre o homem e o Estado ou porque vão com a maré; outros ainda porque passam por heróis, a derrubar ou a vandalizar estátuas de “fascistas”, como Abraham Lincoln ou como o Padre António Vieira. O apetite do lucro de uns junta-se ao zelotismo utópico ou ao instinto de saque de outros. E à ignorância e ao simplismo populismo de quase todos.

A Força das Coisas

Também a Trump, que derrotou os tradicionais conservadores do Partido Republicano – de Jeb Bush e Marco Rubio a Ted Cruz – e se apoderou do lugar e da agenda deles, lhe faltou sempre aquele substrato de convicções e de princípios profundos, que vem das ideias e das concepções de vida de longa-duração. Talvez por isso, e por temperamento e circunstância, não tenha percebido que, a partir de um certo momento, não valia a pena persistir, mesmo com razão, numa batalha que a força das coisas já tornara perdida. A partir do resultado consagrado pelos poderes deste mundo na eleição presidencial o que passava a estar em jogo era conservar a maioria no Senado.

No momento em que o Presidente se afastasse, deixando o que houvesse a decidir aos tribunais, a coligação anti-Trump que elegeu Biden desmobilizava. Com a sua insistência, usando o peso da popularidade entre o eleitorado republicano, e com o seu pouco ou nulo empenho na campanha senatorial da Geórgia, os Republicanos acabaram por perder dois senadores, perdendo assim a maioria no Senado.

O Partido Republicano que Trump ajudou a construir, um partido mais popular, mais baixa classe média e trabalhadora, mais chegado aos latinos e aos negros, era um bloco de 74 milhões de eleitores, face a uma coligação negativa que ia dos megabilionários de Silicon Valley – e de outros vales – aos Antifas, passando, claro, pelos novos “cabeças de ovo” da Academia e dos media, habituados, como bons puritanos, a justificar os próprios excessos pela bondade das suas causas e a demonizar e perseguir o inimigo, as suas causas e os seus excessos. A invasão do Capitólio por adeptos de Trump serviu-lhes na perfeição para confirmar e justificar a estratégia de Redutio ad Hitlerum que há muito prosseguiam.

A Urgência de uma Trégua

Fez falta a Trump a formação, a base doutrinária e ideológica e o entendimento de que a luta política, como qualquer conflito, tem essencialmente que ver com unir e reunir os Amigos e dividir os Inimigos. O novo Partido Republicano, com a sua mistura étnica e social, era uma força que, além de poder ter ganho o Senado na Geórgia, iria com certeza ter uma retumbante vitória nas próximas eleições para os Representantes. Já não será bem assim.

A principal urgência da América, neste momento, é reconhecer o fosso aberto entre “o povo de Trump” e o “povo anti-Trump”, negociar uma trégua e ir depois, progressivamente, restaurando um espaço comum.

Mas há muito quem, pelas melhores e piores razões, não queira que isso aconteça:

No campo de Trump, há os que se acham vítimas de uma fraude gigantesca e querem repará-la, deslegitimando Biden ou fazendo-lhe o que muitos dos que agora o apoiam fizeram a Trump desde o princípio do mandato.

Do lado dos Democratas há os que querem perseguir Trump para o punirem, e assim pôr fim à diabólica origem de todos os males. Ou os que, mais sofisticados, querem persegui-lo para o obrigarem a ficar na política e a usar a sua popularidade nas bases republicanas para pressionar o partido e as suas cúpulas, dividindo-o entre pró-Trump e anti-Trump – e condenando-o assim a uma longa marcha pelo deserto.

E há Trump. Se o Presidente se afastar voluntariamente (o que é uma incógnita) e deixar acontecer dentro do partido uma sucessão natural que beneficie da dinâmica popular criada em torno dos valores e dos princípios do nacionalismo conservador norte-americano, valores cristãos, patrióticos, familiares, de liberdade económica temperada pela solidariedade, o Partido Republicano poderá voltar a ter a força que teve nos tempos da presidência de Ronald Reagan, quando, em plena Guerra Fria, a América foi um farol de liberdade e força para o Mundo Livre.

Em 12 de Janeiro, o Vice-Presidente Mike Pence, em resposta a Nancy Pelosi, que a oito dias do termo do mandato de Trump quer invocar, pela primeira vez na História, o artigo 4º da 25ª Emenda à Constituição para pedir o Impeachment do Presidente por incapacidade, escreveu que assim se abria um perigoso precedente e se trilhava um caminho de vingança e castigo que não lhe parecia de todo desejável:

“Depois dos terríveis acontecimentos da última semana, as energias da Administração estão dirigidas para garantir uma transição ordeira. A Bíblia diz: “Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu … um tempo para curar, um tempo para construir”. […] No meio de uma pandemia global, num momento de crise económica para milhões de Americanos e perante os trágicos acontecimentos de 6 de Janeiro, o tempo é agora para nos unirmos, para nos curarmos.”

São palavras sábias e prudentes de um homem a que os mais radicais do seu partido chamaram “traidor” mas que tem um passado de seriedade e coerência moral e política.

Talvez não pudesse dizer outra coisa, mas também não havia outra coisa a dizer. Para o bem e para o mal, o assunto está encerrado – como o próprio Trump já o reconheceu. E para o bem de todos, no mundo que nos espera, é urgente que a América seja uma nação forte e livre.