Donald Trump é, no momento em que vos escrevo, o favorito a vencer as eleições presidenciais norte-americanas que se realizarão daqui a pouco mais de 10 meses, em Novembro deste ano. Após uma vitória folgada nos caucuses republicanos do Iowa, onde ficou à frente de Nikki Haley e de Ron DeSantis, que entretanto desistiu, e uma segunda demonstração de força em New Hampshire, tudo parece indicar que irá conseguir a nomeação republicana, apesar dos problemas judiciais.

Tudo isto nos pode parecer irracional e inexplicável. Independentemente das nossas posições políticas pessoais, é consensual que nem Joe Biden nem Donald Trump são os políticos mais adequados dentro de cada um dos seus campos ideológicos. Seria perfeitamente concebível que o Partido Republicano encontrasse um político igualmente conservador na economia e nos costumes, e com uma política externa semelhante à de Donald Trump, mas com uma competência política, conhecimento técnico, idade, adequação mental e um registo ético e judicial muito superiores. Da mesma forma, seria perfeitamente possível conceber um político do partido Democrata, com as mesmas posições ideológicas de Joe Biden, mas com uma aptidão física e mental, uma idade, e uma capacidade de mobilização eleitoral muito superiores. No entanto, ambos os partidos parecem pré-determinados a seguir um caminho já traçado de uma repetição das eleições de 2020. Note-se que tal estaria longe do ideal, quer do ponto de vista normativo, quer do ponto de vista empírico e estratégico. Na verdade, creio que nem o Partido Democrata nem o Partido Republicano estão a maximizar o seu potencial sucesso eleitoral com estas escolhas.

Porque vão ambos os partidos seleccionar candidatos impopulares? As razões são, naturalmente, múltiplas, mas vale a pena elencar algumas. O método escolhido para nomear os candidatos presidenciais (primárias que se realizam de forma sucessiva em vários estados e onde muitos candidatos se apresentam) gera uma descoordenação notável. Muitos querem lançar as suas candidaturas, mesmo sabendo que não terão hipótese de sucesso, como forma de ganharam visibilidade política nacional para o futuro, como candidatos futuros à Presidência, Vice-presidência e Senado. Mesmo que um candidato não seja desejado por muitos, se os seus adversários estiverem altamente fragmentados e descoordenados, pode não surgir nenhuma alternativa. Provavelmente, foi isso que aconteceu em 2016, quando Donald Trump conseguiu a sua primeira nomeação presidencial. A inexistência de líderes partidários de âmbito nacional entre eleições também favorece que o último presidente e candidato presidencial tenham mais tempo mediático, recursos financeiros e sejam informalmente considerados os líderes em funções, a quem todos devem lealdade. O facto de Donald Trump não ter concedido a vitoria em 2020 acentuou a sensação de prolongamento da sua liderança sobre o Partido Republicano, quase como “incumbente”. O que significa que duas figuras altamente impopulares se irão defrontar, com toda a probabilidade, em Novembro e uma delas irá ocupar a Casa Branca.

Entre Joe Biden e Donald Trump, as sondagens actuais indicam que o último é favorito. A impopularidade geral do incumbente não costuma acabar em vitória e é extremamente difícil de ultrapassar. Apesar dos bons resultados económicos conseguidos durante a presidência de Joe Biden – o crescimento económico e o crescimento real dos salários foi historicamente elevado – os eleitores têm uma aversão particular à inflação. O eleitorado também não sente particular confiança num presidente de idade tão avançada, cujos movimentos físicos parecem já difíceis e cuja acuidade mental parece estar a decair. Donald Trump, no entanto, terá uma tarefa mais difícil que qualquer outro candidato Republicano mais moderado teria. Afinal de contas, é uma figura altamente polarizadora e transmite um sentimento geral de negatividade para os independentes, bem como para aqueles que se situam no espaço decisivo entre os dois partidos. É uma figura que representa uma política altamente conflituosa, incerta, e constantemente exaustiva.

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Assim, apesar da corrida estar muito longe de estar decidida, há que falar de uma vantagem que Donald Trump tem: as actuais instituições políticas norte-americanas favorecem o partido Republicano. Devido ao método do colégio eleitoral e de eleição do Senado, altamente desproporcionais, os Republicanos não precisam, hoje, de ter mais votos para ganhar as eleições. Pelo contrário, os Democratas precisam de cerca de 4 pontos percentuais de vantagem sobre o partido Republicano para chegar à Casa Branca. Há, portanto, uma probabilidade elevada de Donald Trump ganhar mais uma vez a eleição no Colégio Eleitoral sem obter uma maioria dos votos. Relembremos que, em 2020, Joe Biden teve mais 7.059.526 votos que Donald Trump, mas se apenas 43 mil pessoas em três estados (Arizona, Geórgia, Wisconsin) tivessem votado em Trump em vez de Biden, este teria perdido a eleição, apesar de obter mais 7 milhões de votos que Trump. Vejo por aí muitas pessoas que tentam justificar este método de eleição utilizando argumentos sofistas sobre uma suposta genialidade da Constituição norte-americana, sobre como este método é justificado pelo federalismo ou como é simplesmente “tradição”. Como cidadã e eleitora norte-americana e como pessoa que estuda sistemas políticos como modo de vida, sinto-me, portanto, na obrigação de esclarecer que a democracia norte-americana tem hoje instituições desadequadas e pouco democráticas, quando comparadas com outras democracias avançadas, em grande medida porque o documento Constitucional foi desenhado para uma era muito diferente, onde a sociedade norte-americana (e outras) simplesmente não valorizavam da mesma forma a igualdade entre todos os cidadãos, os princípios de proporcionalidade e de representatividade. Para além disso, o documento é anormalmente difícil de alterar. Uma mudança constitucional nos Estados Unidos requer uma supermaioria muito mais difícil de obter que em qualquer outra democracia constitucional. A dificuldade é tal que a Constituição norte-americana não é alterada desde 1971, há mais de 50 anos (em 1992 foi feita uma emenda, mas que apenas incidia sobre o salário dos Congressistas, aparentemente o único assunto que uma larga maioria bipartidária concorda).

Comecemos pelo princípio. A base de qualquer democracia é a ideia de que a vontade da maioria deve prevalecer sobre a minoria, uma vez realizadas eleições de regras imparciais e de sufrágio universal. Segundo este simples princípio, o método actual de eleição do executivo norte-americano viola este princípio. E é o único país do mundo em que um presidente pode ser eleito após perder o voto popular, uma enorme distorção. Mas qual a importância da maioria? Qual a origem da regra da maioria para a decisão do nosso futuro colectivo? Na verdade, é fascinante constatar que uma enorme quantidade de comunidades humanas, em todas as geografias e múltiplos períodos históricos, chegaram à mesma regra – a regra da maioria simples – para tomar decisões colectivas. Nesse sentido mais básico e primordial, a democracia em ponto pequeno é algo universal e muito antigo. Parece haver uma origem quase antropológica da regra da maioria. Se é certo que muitas comunidades ao longo da história tentaram experimentar a regra da unanimidade, rapidamente a sua rigidez e inércia fica à vista. A universalidade e atractividade da regra da maioria parecem sugerir que há algo especial nela.

Alguns pensadores sugeriram algumas razões para tal. O constitucionalista alemão Hans Kelsen apontou um argumento intuitivo: assumindo que cada indivíduo tem o mesmo valor e que as suas vontades individuais são expressas através do seu voto, então a decisão da maioria é aquela que minimiza o número de vontades contrariadas, é a decisão que minimiza a insatisfação da população com a decisão tomada. Para Kelsen, é inevitável que alguns saiam insatisfeitos, mas se há mais vontades de um lado que do outro, então seguir a maioria é maximizar a liberdade e autonomia individuais. Também o filósofo francês Condorcet falou da capacidade da maioria, como colectivo, de chegar a uma decisão melhor do que um único individuo (naturalmente que este resultado, como outros resultados sobre a “sabedoria da maioria”, tem uma série de limitações). O politólogo Adam Przeworski sugeriu que a regra da maioria pode ser vista como uma espécie de “contagem de espingardas”. Uma eleição democrática é um método pacífico de resolver conflitos existentes dentro de uma sociedade. Em vez de os resolver através da violência de uma guerra civil, podemos simplesmente contar quantas pessoas estariam de cada lado oposto da guerra, evitar o derrame desnecessário de sangue, e admitir que o grupo com mais pessoas ganharia. Até cientistas biológicos, que se dedicam ao estudo das decisões colectivas  dos muitos animais não-humanos que vivem em grupo, chegaram à conclusão de que uma regra de decisão democrática é, em geral, mais benéfica para um grupo animal como um todo do que uma regra despótica.

No entanto, todos já ouvimos falar da necessidade de nos “protegermos da tirania da maioria” com instituições não-maioritárias ou mesmo anti-maioritárias. Entre elas estão a capacidade dos tribunais de invalidarem decisões dos parlamentos que ultrapassem determinadas balizas, as regras supra-maioritárias para alterações constitucionais ou a existência de câmaras altas (Senados) que pode anular ou modificar as decisões de câmaras baixas, geralmente mais representativas. Penso que não há semana em que não leia ou ouça em jornais, revistas, debates e na esfera pública, uma versão do mesmo argumento: a democracia liberal é mais do que a democracia eleitoral e, como tal, precisamos de restringir a competição democrática às regras do Estado de Direito, como as liberdades e garantias individuais protegidas pelos tribunais. Este argumento tem inúmeros problemas lógicos, políticos e filosóficos e é, na verdade, surpreendentemente fraco. Em primeiro lugar, há uma tendência para aqueles que usam empurrarem para dentro da grande tenda “Estado de Direito” todas as coisas em que eles acreditam, mas que não são obviamente prioritárias em relação à vontade de uma maioria. Em segundo lugar, esse argumento pressupõe de que haja um grupo pequeníssimo de pessoas (por exemplo, juízes de tribunais constitucionais) que podem decidir quais as regras e valores que se podem sobrepor à democracia e, mais, que esse grupo pequeno está particularmente iluminado para o saber e fazer. Como a composição do actual Supremo Tribunal norte-americano nos mostra tal está longe de ser verdade. Se é verdade que noutros países as nomeações judiciais são feitas de forma menos politizada, não menos verdade é que a justiça constitucional é sempre política e tal politização irá sempre acontecer, em maior ou menor grau, estando nós em acordo ou desacordo com a maioria actual. Em terceiro lugar, e mais importante, qualquer instituição supra-maioritária é, na verdade, um veto de uma minoria. Se é possível que essa minoria seja um grupo desprotegido ou oprimido, também é possível que essa minoria seja uma minoria que pretende oprimir outros. Ou uma minoria que é beneficiada política, social ou economicamente pelo status quo em vigor e que, como tal, se recusa a qualquer mudança democrática.

Ironicamente, se olharmos para a história do actual modelo de democracia representativa originário no século XIX, as instituições supra-maioritárias, não-maioritárias e anti-maioritárias foram mais frequentemente utilizadas para proteger minorias instaladas que beneficiavam injustamente do status quo ou que pretendiam oprimir outros. Essa é a origem histórica das câmaras altas dos parlamentos, da desproporcionalidade eleitoral, do colégio eleitoral, de restrições censitárias ou de literacia ao sufrágio, de enviesamentos territoriais inscritos nas leis e constituições, no poder de muitos tribunais constitucionais e na dificuldade de alteração constitucional. Mais uma vez, o Marquês de Condorcet a escrever ainda no século XVIII, afirmou sucintamente sobre o bicameralismo: “Estaríamos enganados se imaginássemos que essas divisões [o bicameralismo] são uma obra de um sistema racional, como às vezes declaram os seus apologistas. Elas foram estabelecidas porque as distinções d’état, de posição, de poder as tornaram necessárias para se obter a paz ou o comum consentimento.”

Se a tirania da maioria pode ser má, a tirania da minoria pode ser muito pior. Saliento também que foram muitos mais os casos em que a tirania da minoria gerou sofrimento, injustiça e opressão do que os casos em que uma verdadeira tirania da maioria o produziu. O Supremo Tribunal norte-americano, por exemplo, serviu tantas ou mais vezes para retirar direitos como para os atribuir (relembro a famosa decisão Plessy v. Ferguson a permitir a segregação racial, bem como a apatia do tribunal em travar o processo de autocratização ocorrido depois do período da Reconstrução no Sul dos Estados Unidos. Relembro também que o Supremo Tribunal tanto pôde dar o direito o aborto como anos mais tarde retirá-lo à sua volição.)

O Colégio Eleitoral é um resquício dos tempos em que o presidente era eleito de forma indirecta através dos Congressos estaduais. Tempos antigos em que os valores democráticos de igualdade e autonomia individuais eram muito parcos: não havia sufrágio universal, grande parte da população não podia votar (por etnia, género ou posses). Falamos de uma época em que havia escravos, que por sua vez não votavam mas que contavam 3/5 de uma pessoa livre para aumentar o peso eleitoral dos estados esclavagistas. Tempos em que não se confiava no voto dos “homens comuns”, pelo que este deveria poder ser ignorado se necessário. O Colégio Eleitoral depende também do Senado, órgão que beneficiava desproporcionalmente Estados pequenos. Hoje, esse viés a favor de Estados pequenos tornou-se um viés a favor de Estados rurais. E, por coincidência, o partido Republicano é o partido actualmente mais forte nas áreas rurais. Mas são as pessoas que votam, não o território ou as fronteiras entre Estados.

As instituições norte-americanas têm mais pontos de veto que qualquer outra democracia. Séculos mais tarde, depois da população crescer exponencialmente, da estrutura económica e social mudar radicalmente, é natural que um documento desenhado para obter o consentimento de 13 delegações de estados pequenos e grandes, esclavagistas e não-esclavagistas, já não seja adequado e resulte em distorções graves à democracia. Não falo de normas, de polimento ou de virtude pessoal. Falo sim de instituições formais. São essas instituições que precisam de ser alteradas nos Estados Unidos. E Donald Trump conseguiu asfixiar as instituições norte-americanas, já de si com todas estas fragilidades, ao resolver ir um passo mais longe e não reconhecer os resultados eleitorais de 2020, perfeitamente legítimos.