Conhecendo o desespero com que as pessoas se confrontam ante o sofrimento físico e psíquico do adoecer sem cura e da morte anunciada, arrisco ainda assim a trazer o lado negro da eutanásia para uma discussão que se tem tornado cada vez mais unilateral, julgo eu que, por falta de força e profundidade de pensamento. É que não obstante a validade dos argumentos que se reúnem em defesa da eutanásia – os quais compreendo e me sensibilizam – existe toda uma dimensão que foge a essa visão e que não tem sido considerada de forma peremptória: a de que a implementação da eutanásia poderá funcionar como a caixa de Pandora trazendo terríveis malefícios para nossa comunidade a médio e longo prazo.

Passo assim a explicitar alguns dos argumentos que coligi e que coloco à vossa consideração, guardando para último o difícil conflito com que esta linha de questionamento me confronta:

1) A experiência institucional e internacional permite-nos antever que a implementação da eutanásia perverte a lógica da prestação dos serviços de saúde, podendo mesmo, em muitos casos e situações, inverter o seu ónus. Tal verifica-se pelos resultados e denúncias que nos chegam do estrangeiro, as quais parecem ocorrer após a inevitável e progressiva inclusão de um conjunto de condições clínicas que não se encontravam previstas no momento da aprovação dos respectivos diplomas mas que clamam também pelo seu “direito” à morte. A eutanásia constitui-se assim como uma anti-tarefa do campo saúde.

2) Se a saúde incorporar a anti-tarefa aa eutanásia, os factores económicos jogarão tendencialmente a favor desta e poderão influenciar a reconfiguração do próprio sistema de saúde pois, como se calculará, a eutanásia é muito menos dispendiosa do que os procedimentos que visam tratar e salvar vidas.

3) Num país em que a gestão tomou conta da saúde, e num sistema de saúde que, por sua vez, incorpora a sua anti-tarefa, assistiremos com muita certeza à emergência da mercantilização e reificação do valor da vida no seio de uma democracia moderna. Esta seria uma regressão sem precedentes no campo dos valores europeus, tal como parece ocorrer em alguns países europeus que disseminaram esta prática.

4) Visto que os sucessivos governos têm revelado uma inépcia em “garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação necessários”; tendo em conta a destruição do Serviço Nacional de Saúde protagonizada pelos actuais governantes; e considerando ainda os graves problemas económico-estruturais de Portugal; poder-se á prever que a incorporação da eutanásia na saúde poderá ser completamente catastrófica com especial prejuízo dos mais velhos, dos mais pobres e dos desfavorecidos que – pela sua condição social e pela maior prevalência de doença física e mental – estão mais expostos a terminar a sua vida “eutanasiados” nos serviços públicos de saúde ao invés de socorridos, estimados e amados.

5) O designado “direito de morrer de forma digna” é uma expressão mal formulada que gera equívocos pois, por um lado, a morte não se constitui como direito, muito pelo contrário: o direito que é consagrado na nossa constituição é o direito à vida e a sua inviolabilidade; por outro lado, não existem morte mais dignas do que outras mas a sua inevitabilidade e circunstâncias. É no apoio fornecido em vida que se pode conferir dignidade ao percurso que um paciente percorre até à sua morte, direito que se pode deduzir da leitura da nossa constituição, e relativamente ao qual o estado, em muitos casos, tem vindo a falhar de forma hedionda.

6) A eutanásia não é um suicídio assistido. É um pedido de homicídio que é requisitado pelo próprio a uma entidade sob a tutela do estado. Nesse sentido, a implementação da eutanásia leva a que o estado – ao ser co-responsável pela morte do paciente – ascenda ao estatuto de homicida.

7) Qualquer discussão e votação sobre a legalização da eutanásia implica necessariamente duas dimensões: a do desejo individual de requerer ser assassinado pelos serviços de saúde devido a doença terminal ou outra condição de saúde muito grave, dimensão essa que tem sido explorada pela comunicação social de forma parcial; e a dimensão político-social que implica a assumpção do estatuto de homicida por parte do estado e a respectiva prática de homicídios, isto, claro está, em transgressão com o espírito da nossa própria constituição e com todo o impacto e potenciais alterações perversas já referidas. Pela sua dimensão político-social, a discussão sobre a eutanásia constitui-se indubitavelmente como matéria de consciência cuja resolução só poderá ser realizada por referendo.

8 Os defensores da eutanásia argumentam frequentemente que os opositores se arrogam do direito de impedir cada um de decidir como quer morrer. Tal afirmação não é verdadeira pois o facto da eutanásia ser ilegal não impede ninguém de se suicidar como pretende. Aquilo que a sua ilegalidade impede é que o estado carregue o ónus de perpetrar homicídios através dos seus cuidados de saúde e que os próprios médicos os pratiquem ou sejam obrigados a praticar.

9) O apoio incondicional e apaixonado de cidadãos saudáveis a uma “opção” que potencialmente incentiva e empurra um conjunto de pessoas em desespero e em sofrimento para a morte parece ser de uma irresponsabilidade e inconsciência improcedentes. Onde reside o humanismo a que este incitamento conduz?

10) Sabendo do volume de maus tratos perpetuados a idosos no nosso país e o abandono a que muitas famílias os vetam em contextos de saúde, poder-se-á prever que muitos idosos que se encontram em situações de vida desesperantes, optem pela triste solução da eutanásia. Será esta sociedade e estes valores que pretendemos para a nossa comunidade que ao invés cuidar e tratar abre as portas para a morte?

11) Existem casos registados de situações clínicas avaliadas como terminais cuja a esperança de vida se estendeu muito para além do previsto. Ao se abrir a porta à eutanásia não estaremos a correr o risco de incitar esses pacientes à morte privando-os de viver o tempo de que poderiam dispor em vida junto dos seus amigos e família?

12) A psicologia confronta-se frequentemente com pessoas cujo suicídio se configura como solução para as perturbações emocionais que experimentam, quer estas advenham de causas médicas ou psíquicas, e confirma, através dos seus métodos de tratamento, resultados satisfatórios com remissão dos sintomas e a capacidade de integração de vivências muito turbulentas e difíceis. Considerando a falta crónica de recursos humanos na área de saúde mental estima-se de antemão a impossibilidade de acompanhar o volume de doentes em situações de desespero e que pretendam ser eutanasiados. Será prudente legalizar a eutanásia sem que existam recursos para acomodar as angústias destes pacientes e suas respectivas decisões? Não será que abrir a porta da eutanásia nos levará à situação canadiana em que os doentes psiquiátricos adquiriram o direito de requisitar a eutanásia para colocar termo à vida?

Expostos os argumentos, resta-me acrescentar que os mesmos não fornecem uma solução para os doentes terminais que pretendem ser eutanasiados e que não apresentam capacidade para cometer suicídio. Não sendo esse o meu propósito com este texto, nutro, no entanto, a esperança que haja ainda espaço para que se realizem avanços na prática da ortotanásia que possam ir ao encontro dessas situações tão extremas e dramáticas. O meu objectivo prende-se, então, com as implicações sociais, políticas, económicas e éticas que a legalização da eutanásia trará à nossa comunidade, as quais muitos portugueses simplesmente querem desconsiderar e outros não estão conscientes delas. Dirigindo-me a estes últimos, espero que cada um de vós possa agora colocar os malefícios anunciados no outro prato da balança da discussão sobre a eutanásia e que atentem a este assunto em consciência no futuro.

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