Para aqueles que se interessam pelo futuro da democracia nos Estados Unidos e com o efeito que esse país continua a ter na ordem mundial, especialmente na Europa, a eleição de novembro é um misto de aflição e angústia. A perspetiva de uma segunda Administração Trump, tanto a nível interno como externo, promete ser um desastre de proporções catastróficas. Tal será abordado neste espaço, à medida que avançamos para o outono.

Porém, outro fenómeno merece ser mencionado para reflexão daqueles que se interessam pela campanha, independentemente da convicção política, que é a assimetria na forma com a imprensa americana segue os dois candidatos. Depois do debate em Atlanta com a CNN, onde, concedo sem reservas, o Presidente Biden esteve mal, na fragilidade e desnorte que por vezes mostrou (há a questão de alegadamente estar doente nessa noite, mas não vale a pena seguir essa pista), a imprensa americana mainstream revelou ainda mais os dois pesos e medidas com que tem seguido, particularmente na era Trump, o partido Democrata quando comparado com o Republicano.

Consultando jornais como o New York Times, ou o Washington Post, ou o Wall Street Journal, e os canais de televisão ABC, CBS, CNN e até mesmo MSNBC, o candidato Republicano pode ser um criminoso condenado, provado como autor de estupro, obrigado a pagar multas por tentar fugir a impostos, incitador de uma insurreição contra o governo federal, promotor de violência política, irascível, malcriado, ignorante, que tal não são fatores principais de interesse ou de exposição. É apenas Trump a ser Trump. O partido Republicano pode desejar que os Estados Unidos se transformem numa teocracia cristã, no maior poluente mundial, que ignore leis internacionais ou que abandone os seus aliados, que tal não é visto como crucial para transmitir ao leitor para este saber que tipo de governação o espera.

Em contrapartida, para os Democratas, existe a piada recorrente que estes estão (sempre) em desordem, o “famoso” Dems in disarray. Debate (vigoroso) interno? Opiniões diferentes? Fações de uma coligação de centro-esquerda? Tudo serve para sugerir que o partido está em colapso, que as forças políticas se destroem umas às outras, que os seus eleitores estão num estado permanente de agonia e desunião. Os Presidentes Democratas têm sempre uma qualquer característica que os faz serem menos presidenciais que Republicanos: Clinton demasiado inconsequente, Obama demasiado elitista, Biden demasiado velho.

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Quando se discute (mais na imprensa do que verdadeiramente nas bases do partido) se o Presidente Biden deve aceitar ou não a nomeação pelo partido na Convenção de Chicago, que acontecerá de 19 a 22 de agosto, um detalhe seria delicioso, se não exasperante. Biden é um mau candidato por ser idoso e frágil. Kamala Harris é má candidata por ser mulher e demasiado radical. Gavin Newsom é altivo e fiscalmente irresponsável. Gretchen Whitmer é jovem e inexperiente. Ou seja, seja qual for o candidato que os Democratas apresentem, fica sempre aquém das expetativas, enquanto para Trump, não existem expetativas.

Pode-se perguntar o porquê desta dinâmica. Quais são as motivações e incentivos para estarmos a ver esta diferença na cobertura jornalística. Na verdade, a resposta é bastante prosaica. Porque é o que gera dinheiro. Peças sobre Trump ou sobre o partido Republicano são recebidas com um encolher de ombros. Uma espécie de fatalidade de Complexo de Cassandra, da inevitabilidade de um choque frontal com o carro que vem em contramão. Para os democratas e liberais não adianta interagir com estes conteúdos, pois não vamos convencer ninguém, e para os republicanos e conservadores radicais não adianta porque já estão convencidos. Porém, quando se trata dos Democratas, todos querem dar a sua opinião, apresentar a sua solução, e explicar a todos que estas contribuições são muito melhores que todas as outras. É uma espécie de teste de virtude democrática, onde tudo pode ser melhor, mais idílico, mais genial, enquanto do outro lado o teste de pureza é a exclusão e o escorraçar de todos os que não prometerem total fidelidade ao ditador em espera.

A imprensa é considerada como o quarto poder, e tem a função vital de ser um contrapoder, a voz do povo, o escrutinador de legisladores e políticos. Não deve ser, no entanto, parcial e manipuladora. A era digital veio subverter o mecanismo pela que a imprensa se regulou durante décadas, sendo que agora os clicks é que trazem receitas por exposição à publicidade, ou por subscrições de quem não quer ter essa exposição (e bem sei que estou a escrever para o Observador). Porém, o que se observa, neste momento, nos Estados Unidos é extraordinário. Quando o New York Times dedica 191 artigos (141 de notícias, 50 de artigos de opinião) ao desempenho do Presidente Biden pós-debate, e uma ameaça de Trump na sua rede social que o Times “será enterrado no cemitério do mau e falso jornalismo” não comanda uma resposta, é porque algo de muito errado está operacional.

Outra frase que se utiliza sobejamente nos Estados Unidos é que a imprensa não aprendeu nada desde 2016. Porém, está na altura de o fazer, pois o que está em jogo é demasiado elevado para continuar a seguir uma linha editorial onde os Democratas são passíveis de serem criticados (muitas vezes justamente) à menor coisa, mas os Republicanos têm sempre o benefício da dúvida, e o Presidente Biden é fair game para todo e qualquer escrutínio, enquanto Trump é ignorado nas suas deficiências e perigosidade.