O show da indignação dos antigos parceiros de Berardo com a prestação do comendador na Assembleia da República só pode surpreender quem não viveu em Portugal no século XXI.  A fúria que lhes extravasa por todos poros nasce não do que Berardo fez (e que eles estavam fartos de saber) mas sim daquilo que ele na sua desconcertante e, na minha opinião, nada ingénua boçalidade expôs sobre a forma como os socialistas se portam nos governos. Sobre  como pegam nos chavões da cultura para tornar aceitável o que não o é;  sobre o funcionamento do capitalismo de Estado em que se tornaram exímios; sobre como conseguem tornar tudo aceitável até que um escândalo rebente e os obrigue ao número da indignação ferverosa.

Todos os governos podem ter gente corrupta. Todos os partidos podem ser corrompidos. Todos os executivos podem celebrar acordos com empresas e organizações que acabam a revelar-se corruptas. Mas nem todos expõem do mesmo modo o aparelho de Estado à corrupção: quanto mais se aumenta a clientela dos dependentes, quanto maior é o intervencionismo estatal, quanto mais se faz equivaler sucesso governamental a políticas redistributivas, quanto maior a despesa fixa, mais aumenta a necessidade de quem governa de  ter à mão o seu capitalista. Personificados nesses homens  que tendo o estilo popular de Berardo ou a pose aristocrática de Ricardo Salgado  (penso que os senhores que se seguem  terão aquele estilo infanto-juvenil dos empresários da área das tecnologias), os capitalistas de Estado (e do Estado) conseguem criar a ilusão de que “o dinheiro aparece sempre”, de que o crescimento económico resulta de  uma questão de conjugação de vontades de gente gira que está nos negócios para promover a cultura, a igualdade, o avanço das mentalidades, ou outro item da agenda estatal do momento.

Os comunistas tinham os seus “banqueiros vermelhos”, gente que no exterior lhes garantia o acesso às indispensáveis divisas e os livrava da pateta ingenuidade dos camaradas revolucionários quando estes, em nome da ideologia, se preparavam para lhes estragar o negócio (não é coincidência qualquer semelhança com a atitude tomada pela República Popular da China, em 1974, quando percebeu que alguns militares portugueses davam sinais de pretender encetar em Macau um processo de descolonização ). Já os socialistas precisam mais do que quaisquer outros líderes dos capitalistas de Estado. Gente que monte a fachada empresarial da demagogia do sem custo, do gratuito, dos investimentos em que o principal, dizem-nos, não são os lucros mas sim a promoção de políticas.

Berardo, tal como Salgado, são homens do tempo de Sócrates. Para os homens que estiveram com Sócrates no governo e que agora governam eles são uns empecilhos, fantasmas que se obstinam em desmontar a Regra Número 1 para entender Portugal: à esquerda o passado começa hoje. Em 2011, o governo socialista fez um pedido de ajuda externa. Ainda o ano não tinha acabado e já o mesmo PS se manifestava contra o programa que ele mesmo tinha negociado. Em 2012 a culpa da crise já não era da falência mas sim das medidas tomadas para a evitar… Em 2019, mostram-se indignados com Berardo, o mesmo Berardo seu parceiro no assalto ao BCP. Não duvido que dentro de uns anos serão os primeiros a indignar-se com os incêndios de 2017 ou os lucros conseguidos pelos novos capitalistas de Estado. Sim, como dizem os espanhóis sobre as bruxas que los hay los hay. Os capitalistas de Estado, claro. Das bruxas não sei nada.

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A Regra Número 2 é a que estabelece: se as pessoas quisessem perceber tinham percebido. A ideia piedosa que anima muitas pessoas de que um dia, quando os outros tomarem conhecimento dos factos , então tudo será diferente é isso mesmo: uma ideia piedosa mas nada mais. Não foi por falta de esclarecimento que em 2011 um milhão e meio de pessoas votou em José Sócrates. Não foi por falta de esclarecimento ou de avisos que o país faliu. Não é por as pessoas não perceberem que em Portugal os problemas se avolumam. É sim por as pessoas terem percebido que viver enganado é mais cómodo. pelo menos durante um tempo, do que enfrentar as decisões inerentes à hora do desengano.

À atenção dos crédulos da tese  de que quando os outros perceberem, então tudo será diferente segue uma pequena lista do que não temos querido ver, isto apenas nos últimos tempos Se é cliente da Caixa Geral de Depósitos (CGD) vai começar a pagar mais pelas comissões. (Um banco público em Portugal é aquele que empresta aos ricos sem avaliação do risco e cobra comissões aos pobres). Manuais gratuitos até ao 12.º ano custam mais 100 milhões do que o estimado pelo Governo. (Como sempre o gratuito sai caríssimo). Dívida do SNS a fornecedores e credores aumenta 51,6% em três anos. A dívida do Serviço Nacional de Saúde a fornecedores e credores totalizou 2,9 mil milhões de euros em 2017, o que representa um agravamento de 51,6% face a 2014.(Uma forma expedita de financiamento: atrasar os pagamentos aos fornecedores) Marcações para renovar o Cartão de Cidadão em Lisboa já estão a ser empurradas para agosto “à opção sistemática dos cidadãos pela procura dos mesmos locais de atendimento e no mesmo período (o de abertura ao público)”.( Portanto a culpa é dos portugueses que não vão renovar o cartão de cidadão a Castelo Branco ao fim da tarde mas sim de manhã, às lojas do cidadão, em Lisboa) 2165 km2, 25 mil habitantes para um só militar. GNR do Alentejo desespera com falta de gente (O paradoxo socialista do costume: quantos mais meios para o Estado menos serviços essenciais o Estado presta!) Soflusa não sabe quando volta a fazer todas as carreiras entre Lisboa e o Barreiro. Faltam trabalhadores para garantir serviço. Empresa espera autorização das Finanças para contratar. ( Idem) A CP contabilizou, até às 18h desta terça-feira, 24 supressões na Linha de Sintra, relacionadas com um “excesso de imobilizações do material circulante” Na segunda-feira, “pelo mesmo motivo, ocorreram também cerca de 20 supressões” (Uma coisa não é a coisa que é: os comboios não ficam parados por estarem degradados. Na verdade nem sequer ficam parados. O que temos é um  “excesso de imobilizações do material circulante”. Mais um pouco de “excesso” e até não temos falta de comboios mas sim excesso.

Regra nº 3. Deve existir. Mas com as duas anteriores já temos que chegue.