Ontem a selecção finalmente entusiasmou os portugueses, embora apenas na segunda parte. Aquele golo aero-espacial de Cristiano Ronaldo – o único golo da história do futebol que poderia ter sido invalidado por falta de brevet do jogador – pagou as inegáveis horas de tédio vitorioso a que esta selecção nos habituou. Não precisámos de roer (muito) as unhas, dispensámos o golo no final do prolongamento e livrámo-nos de outra lição motivacional de Ronaldo antes dos penáltis. Atrevo-me a dizer que passámos nas calmas. Glória a Ronaldo nas alturas! É verdade que, nesta fase do campeonato, todos os jogos são dramáticos. Por muito que dentro das quatro linhas o jogo pareça insosso, o simples facto de se tratar de uma meia-final tempera-o, empresta-lhe uma emoção subjectiva que escapa aos neutrais. Mas quem é que quer saber dos sentimentos dos neutrais nestas ocasiões? Quem é que, no meio de uma guerra, vai perguntar aos suíços o que estão eles a achar dos confrontos? Devemos deixar claro que Portugal não tem qualquer obrigação moral de resgatar adeptos de equipas já eliminadas do oceano de tédio competitivo em que foram abandonados pelas suas selecções.

Porém, sinto que não estaria a ser honesto se não me queixasse da nossa selecção. Do que tenho sentido falta nem é tanto da excelência futebolística de outrora, dos pratos gourmet preparados por chefs como Figo, Rui Costa, João Pinto e Deco, mas de um bom e velho escândalo à portuguesa. Até agora não há notícias sobre prostitutas autóctones, noites em casinos, desaguisados nos balneários, confusões nos quartos a altas horas da noite, agressões a recepcionistas, apalpões às meninas do serviço de quartos, murros a árbitros, perseguições a fiscais de linha eslovacos. Bem sei que as derrotas levantam os tapetes que as vitórias lançam sobre os escândalos, mas não acredito que esta equipa de inspiração baden-powelliana esconda vilezas ou que Fernando Santos tenha submetido os jogadores a um código de silêncio que os impeça de verter para o exterior as tropelias cometidas no santuário de Marcoussis. Parecem todos religiosamente comprometidos com a equipa e se entre eles existe algum pacto de silêncio será mais monástico do que mafioso.

Ora, se por um lado isso nos trouxe até à final, por outro, o facto de esse sucesso nascer da ordem e da organização e não do caos e da rebaldaria retira-lhe uma certa portugalidade. É como se estivéssemos a ganhar com as armas dos outros. Isto, sim, é jogar feio. Somos uma espécie de cábulas. Bons cábulas, mas cábulas. Felizmente o vazio de uma selecção cheia de talentos, mas propensa a situações bizarras foi preenchido com notável rapidez pela Bélgica. Enquanto nós somos a nova Itália, com pozinhos de infalibilidade germânica, a Bélgica é o novo Portugal. Favoritos antes do torneio, com a maior concentração de talentos individuais entre todas as equipas, o melhor lugar no ranking da UEFA, com algumas exibições ao nível do que deles se esperava e uma eliminação risível nos quartos-de-final (risível não tanto pelo resultado, mas pelo sentimento de impotência, como um Ferrari encostado à berma sem combustível e com um condutor bipolar a esbracejar), aos belgas só lhes faltava um escândalo para merecerem o título de “Portugal honorário”. E aí está o escândalo! Após a vitória sobre a Hungria, na melhor exibição dos belgas no campeonato, organizaram um churrasco no qual também participaram os familiares dos jogadores e elementos da federação. Estes, já inebriados pela vitória, resolveram inebriar-se de forma menos figurativa, com álcool, tanto álcool que tiveram de ser arrastados para os respectivos quartos. Os jogadores, sujeitos a uma vigilância norte-coreana (para se ter uma ideia, o chefe da segurança é um ex-guarda prisional), não gostaram de testemunhar o comportamento liberal dos responsáveis federativos e protestaram.

O mais parecido com um escândalo que tivemos para oferecer foi o arremesso do microfone da CMTV para um lago, um acontecimento que, mais do que nos escandalizar, nos divertiu, além de nos ter proporcionado o inesquecível momento em que dois mergulhadores recuperaram o microfone e o apresentaram ao mundo como se fosse o derradeiro vestígio de um mítico galeão espanhol ou a prova irrefutável da existência da Atlântida. Quanto a escândalos da dimensão do belga, nada. Por enquanto. Pode ser que, depois de domingo, em caso de derrota, se fique a saber que nem todos os jogadores rezavam o Pai-Nosso antes de irem para a caminha e que outros, ainda mais rebeldes, nem sequer bebiam um copinho de leite.

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