Naquilo que é a minha (fraca) atividade enquanto físico, a maior parte do tempo é dedicada àquilo que se designa por fenómenos emergentes. Fenómenos emergentes são fenómenos que não se observam nos componentes de um sistema, mas emergem da correlação/interação desses mesmos componentes. Ou seja, se olharmos isoladamente para um “átomo” não conseguimos observar o fenómeno, mas quando olhamos para a “mistura” lá nos aparece. Coisas que resultam da ligação entre eles. Há quem lhe chame “complexidade”, que é uma expressão que detesto porque me soa sempre a “não percebo matemática”. Um bom exemplo disto são os fenómenos económicos, porque a economia resulta da relação entre as pessoas e não é observável se olharmos para uma pessoa individualmente.
Estes sistemas são muito complicados de estudar porque a matemática que temos começa a falhar. A geometria e o cálculo só “gostam” de coisas completamente dependentes e iguais, em que um metro é um metro em todo o lado, e a estatística só gosta de coisas independentes, para que o que é diferente se possa fazer igual. O “meio termo” é sempre um problema matemático cabeludo e isso leva, normalmente, a má física e a má qualquer-ciência-que-daí-derive. O que daí não derivar não é ciência, logo não tem problemas, só respostas parvas.
Nunca houve na história um momento tão bom como este para observar fenómenos emergentes. Porquê? Porque o sistema em que todos os componentes estão ligados é, por excelência, a sociedade humana. Com o advento das chamadas redes sociais passou a existir um universo virtual de relações em que estas se materializam em registos informáticos, conseguindo-se aumentar facilmente as nossas relações e o diâmetro da nossa influência. Humoristas sem piada no palco são sucessos enormes no universo virtual a dizer as mesmas piadas fracas sem nenhum upgrade de inteligência percetível, tal como pessoas sem qualquer mérito observável são “hubs” de opinião sem razão aparente (algum mérito terão…).
A verdade é que em ambiente livre, ou pelo menos mais livre, as relações entre as pessoas tomam escalas completamente diferentes. Mas estes, sendo fenómenos emergentes, não são produto da liberdade e facilidade das relações entre as pessoas. Já existiam “Kardashians” e humoristas da treta antes de existirem redes sociais informatizadas. Aquilo que é interessante, é o que se desenvolve a partir da liberdade de relação e comunicação. Não sendo eu um estudioso destes fenómenos sociais, devo informar o leitor que o que se segue não tem base científica de facto. Tal como a Sociologia e outras disciplinas conexas, mas, neste caso, devo dar essa nota antes de continuar, não vão as pessoas começar a chamar-me coisas.
Nas últimas semanas fiz uma experiência no Twitter, uma rede social em que as interações entre os componentes do sistema, as pessoas, se fazem de forma quase livre à partida. Não há imposições de regras à cabeça, qualquer pessoa se pode reclamar como sendo Donald J. Trump – até o próprio! – e qualquer pessoa é livre de escolher os “tweets” que quer consumir. Do fascínio inicial que a rede me trouxe, houve algo que me saltou à vista e que me trouxe a seguinte questão: é a liberdade de relação uma promotora da liberdade de opinião? Ou, pelo contrário, é a supressão da liberdade um fenómeno emergente da própria liberdade? Por outras palavras, é a liberdade o caminho para o fascismo e não o contrário?
Isto surgiu-me, porque um amigo meu, sujeito com atividade empresarial de sucesso, matemático de formação e pessoa mais ativa que o português normal na busca de um bem comum (entra nos manifestos todos e nos livros de soluções para o futuro) cometeu o “crime”, num comentário mais informal sobre os debates presidenciais, de sugerir que uma candidata estava mais gorda. Não que era gorda, mais gorda. Logo se levantou uma turba de mulheres de todas as idades e, imagino, de todo o tamanho, contra o dito comentário, com insultos vários ao autor do “tweet” e ordenando que o dito fosse imediatamente apagado por se enquadrar num qualquer crime modernaço de nome inglês.
Achei aquilo um exagero, principalmente porque tinha lido todo o tipo de insulto a outro candidato, como “facho”, “fascista”, “grunho”, “aldrabão”, “porco”, etc., sem ter observado que alguém se levantasse de bíblia na mão a condenar quem insultava o homem. E comentei isso à laia de constatação, que é mais condenável dizer que uma mulher estava mais gorda do que dizer que um homem era um porco, grunho ou aldrabão.
Com isto cometi outro crime. O crime de sugerir que o outro crime poderia não ser um crime, dado que, segundo os meus atacantes, esse crime era mesmo crime e o candidato em causa era mesmo um porco, grunho e aldrabão. Dezenas e dezenas de jovens (aparentemente) que, de livrinho vermelho na mão, se dispunham a chamar-me de tudo porque fiz aquela observação. Um “khmer rouge” virtual que se levanta naquele que, supostamente, seria o mais livre dos ambientes. Em concreto, pessoas em plena posse de toda a liberdade organizaram-se espontaneamente para constranger a opinião alheia com a qual não concordavam. Ou, até, uma simples observação deveria ser condenada.
É esta, quase de forma pura, a definição de um fenómeno emergente, algo que acontece pela simples junção de vários componentes do sistema que não se observam quando estão isolados. Claro que isto é uma observação sem base científica e com muita base de “fézada”. Mas se começarmos a pensar em todo o tipo de “cancel culture” que se vai formando, há um padrão que se torna familiar: quando se começam a abrir brechas na imposição da liberdade, o que surge naturalmente é a sua supressão. Por outras palavras, liberdade é uma imposição, não um estado natural de equilíbrio.
E se não dá para fazer ciência a partir disto, dá, pelo menos, para questionar as tentativas de regulação de redes sociais que se vão criando e que podem ir no sentido oposto daquilo que se pretende. E falando de redes sociais, falamos da sociedade em geral. Aquilo que se tem observado são tentativas de limitação de certo tipo de opinião, sendo que o caso mais gritante nos últimos tempos será o do futuro ex-presidente dos EUA. Várias pessoas atribuíram as culpas da invasão do Capitólio a uma regulação relaxada da opinião do sujeito veiculada no Twitter, talvez esquecendo-se que ele foi, de facto, presidente dos EUA eleito fora do Twitter por dezenas de milhões de pessoas. Mas se o fascismo é um fenómeno emergente da liberdade, promover uma regulação limitativa é apenas um passo em direção ao ponto que se quer evitar. Se calhar, aquilo que se devia fazer seria exatamente o contrário: impôr a liberdade de opinião de tal forma que se castigasse fortemente quem a tenta limitar.
Acho que boa parte de nós pensa, por razões históricas, que a democracia e a liberdade são consequências naturais do fascismo e ninguém pensa que a física do sistema poderá levar a que seja o contrário. A diferença de perceção não é inócua, já que na tentativa de corrigir um problema, podemos estar a ir na direção que queremos evitar. A liberdade de opinião, enquanto direito inalienável, poderá ter de ser imposta pela força, ao contrário daquilo que hoje acontece, quando toda a senhora que ache que tem mais rabo do que gostaria se sente no direito de ofender e calar quem sugere que poderá estar mais gorda.
Tenho pena que os sociólogos deste país se dediquem a pantominices de achar que tudo deriva do colonialismo, capitalismo e patriarcado em vez de fazerem ciência. Eles, mais que eu, deveriam dedicar-se aos fenómenos emergentes da sociedade e, com isso, trazerem valor àquilo a que chamamos de lei, mas que no fundo é a regulação das nossas relações. Relações que se querem livres, obviamente, e não sujeitas a hordas da criançada estúpida armada em khmer rouge.