Logo no início da epidemia da Covid-19, e na espuma da vaga de especialista-que-é-mais-esperto-que-os-outros-todos-com-doutoramento-no-estrangeiro, a faculdade que tem a caridade de me incluir na lista de investigadores e professores também produziu a sua dose. Mas, para além daqueles que tinham sido designados pelos jornais para mandar bocas, havia outros que tinham sido designados para uma comissão de apoio às autoridades e que, obviamente, estavam calados no que à opinião publicada diz respeito. Se estes tinham acesso a todos os dados quase ao minuto, aqueles produziam dezenas de linhas baseadas no seu melhor conhecimento teórico que, face às circunstâncias e objetivos públicos, laboravam em erros básicos. Claro que não estou a falar naqueles que, qual “Guedes a quem o medo não assiste”, despejavam disparates às carradas, mas sim em investigadores de prestígio inatacável (não fossem eles docentes do quadro de uma escola de ciência) a quem faltavam os dados. Há níveis da escala do absurdo onde não me meto.

Como dentro da mesma escola havia das duas espécies, sendo que uma delas não podia falar, gerou-se um razoável desconforto que se traduzia em mensagens de WhatsApp a circular de pessoa para pessoa. Devia calar-se, ou não, quem, desconhecendo os dados, transmitia asneiras para os jornais? Felizmente, tal não foi feito, embora esteja certo de que as pessoas em causa, estando na posse de todos os dados, chegariam à mesma conclusão de aqueles que estavam a servir de apoio às autoridades. Tendo eu, passadas umas semanas, lido artigos de outros investigadores da mesma casa com opiniões contrárias, deduzo que a solução encontrada tenha sido essa mesmo, publicar artigos com a opinião contrária.

Como entrei bastante tarde na vida de investigador (já tinha 20 anos de carreira profissional em cima), ainda hoje muito daquilo que faz a vida dos académicos se me apresenta, de alguma forma, estranho. Lembro-me, no entanto, de um investigador que estudava a Física de alguns processos médicos, com grande impacto (leia-se publicações e citações científicas) e, no mesmo centro de investigação, a diretora do centro ter uma oposição pessoal ao nível ético de ver retiradas conclusões de âmbito médico num artigo de Física. A força do centro era, contudo, essa mesma – a de se poder fazer Física para lá daquilo que são os valores éticos de cada um. A diversidade é o maior dos ativos para quem procura evolução.

O não-episódio da Nova SBE e da suposta limitação à Prof.ª Susana Peralta de colocar o nome da escola — que afinal nunca aconteceu porque um concelho de académicos sérios se debruçou sobre a hipótese e a rejeitou –, é uma demonstração de que, no fundamental, escolas dotadas de gente inteligente até podem colocar individualmente hipóteses que violam os valores últimos da universidade. No entanto, no fim, o coletivo acaba por decidir bem e quem colocou a hipótese acaba por voltar atrás na hipótese que levou a discussão. Repare-se, não obstante, que nos anteriores estávamos a falar de ciência (ou, como diz NN Taleb, “a mãe de todas as ciências”). No caso da Nova SBE, que ensina Economia e Gestão, estaremos no domínio da engenharia, na melhor das hipóteses. Se no primeiro caso estarei certo de que, com os mesmos dados, todos chegariam à mesma conclusão, neste caso é discutível se assim seria. Tal reforça o bom resultado da suposta reunião que, repita-se, foi de não limitar em nada aquilo que já estava a ser feito.

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Infelizmente, do não-episódio construiu-se uma discussão a ligar a não-conclusão da reunião ao modelo de financiamento da escola. Discussão essa completamente absurda. Ainda estávamos nós a descansar deste não-caso e, nem de propósito, aparece um abaixo assinado de um conjunto alargado de “cientistas sociais”, que no rol de salários do Estado aparecem como professores e investigadores, a condenar um livro. A obra, que não li, é de outro “cientista social”, o Prof. Riccardo Marchi, sobre o surgimento da direita antissistema em Portugal, denominada “Chega”. Eu fiz um esforço para entender a afiliação (a faculdade para quem trabalham) dos signatários da queima do livro, sendo que não aparecia nenhuma escola privada. Como é de esperar para quem preza o seu dinheiro, nenhuma que fosse financiada por privados.

A história que começou nas ciências mais duras, veio para a economia e gestão e já vamos no “Chega”. Curiosamente, tudo em 3 meses. Aquilo que era uma objeção científica séria foi tratada como diferença de opinião em Física, enquanto um mero estudo de caso sobre uma corrente política é tratado da mesma forma que o partido nazi alemão tratava as opiniões que lhe pareciam negativas. Pelo meio, um não-caso aproveitado para discutir questões religiosas de financiamento.

Como se demonstra facilmente, tanto nos primeiros casos, como no último, a principal fonte de financiamento é o Estado português. Conclui-se que o problema não está, de forma nenhuma, no financiamento. Poderá ser um problema de desprezo pela evolução do conhecimento? Para quem já me leu antes, vai rever aqui algumas das reticências que sempre coloquei de por ao mesmo nível ciências, engenharias e artes, de um lado, e outros temas de metodologia discutível e de base científica nula, do outro. Felizmente, a origem dos signatários da queima do livro é suficientemente variada em termos de universidades para favorecer esta minha opinião. A notícia de que o Sr. Reitor da Universidade Nova iria investigar a questão do financiamento da Nova SBE vem contrastar de forma gritante com a não-notícia de que todos os outros reitores iriam investigar a utilização do seu nome para a queima de um livro. E isto, vão-me desculpar os magníficos reitores, choca-me!

Eu continuarei, enquanto me for possível dar a minha opinião, dizendo de onde venho sempre que posso. Na minha empresa temos mais de uma pessoa a fazer artigos de opinião, sendo que incentivamos toda a gente a meter o nome da empresa. Para nós, sempre foi um motivo de orgulho mostrarmos que temos opiniões divergentes dentro de casa e quantas mais melhor. O departamento de marketing tem como objetivo convencer os demais colegas a escreverem artigos de opinião, tal a importância que damos a isso. Como há quem confunda opiniões pessoais com institucionais (cada vez que alguém do FMI escreve um artigo, nos jornais vem “o FMI diz que”), faço a ênfase de que é uma opinião pessoal.

Das universidades a que estou ligado não faço referência porque é uma opinião pessoal e cientistas não têm opinião. Mas poderia fazê-lo e não condeno quem o faça. Obviamente, na empresa todo o financiamento é privado. O chocante nisto tudo é saber que há dinheiro do Estado a financiar queima de livros. A diferença, face àquilo que foi o caso da Nova SBE, demonstra que há Ciência sobre assuntos sociais que se enquadram na universidade e “Ciências Sociais” que não e, por isso, o Estado não deve financiar. Cabe aos magníficos reitores começarem a tomar uma atitude sobre isto. E não é assim tão difícil, o caso do livro do Prof. Riccardo Marchi até dá uma “lista de compras”.