Fui convidado a vir a Portugal neste início de Setembro para uma conferência chamada “Re-Humanizar o Mundo”. Tomei a liberdade de comentar um pouco criticamente o título do evento, admitindo desde já que tenho um problema crescente com os nomes das conferências para as quais sou convidado. Talvez porque os levo muito a sério. Ou porque antes de entrar na política estive dedicado às ciências sociais e à investigação académica e, assim, ancorei em mim o paradigma padrão das ciências sociais que me obriga a procurar automaticamente as forças sociais (actores, sujeitos) e a sua motivação para fazer isto ou aquilo. Contudo, não sei quem deverá humanizar o mundo, com que motivação, de que forma nem através de que mecanismos isso deva acontecer.

Além disso, nós – pelo menos alguns de nós – somos hipersensíveis a certas palavras, frases ou slogans do comunismo. A palavra “humanizar” é uma delas. Nos anos 60, o slogan “socialismo com rosto humano” foi promovido no nosso país, então ainda Checoslováquia. Muitos de nós, que já vivíamos activamente esse período, não queríamos dar ao socialismo (como se chamava o comunismo naquela época) um rosto humano, não queríamos melhorá-lo, não queríamos humanizá-lo. Simplesmente não queríamos o socialismo (comunismo) nem mesmo nessa altura. Esta é provavelmente a base do meu cepticismo actual em relação a palavras deste tipo.

O slogan “re-humanizar o mundo” no título desta conferência não é uma formulação vazia e enganosa? Poderia ser este o objetivo de alguns dos actores relevantes do mundo de hoje? Quais? Deveriam ser políticos? Filósofos? Cientistas? Artistas? A geração mais velha ou mais jovem? Não há resposta para estas perguntas.

Acredito na evolução orgânica do mundo, nas suas mudanças graduais e na impossibilidade de gerir essas mudanças a partir de um só lugar através do construtivismo e activismo políticos. Qualquer alteração deve fazer parte de um processo democrático. É impossível repetir os métodos de um sistema absolutista ou autocrático. Sei algo sobre esse sistema. Passei mais de metade da minha vida na Checoslováquia comunista. Sei que Portugal também tem a sua própria experiência histórica de um sistema semelhante. Quando estive em Portugal pela primeira vez, há trinta anos, falei longamente sobre isso com o então Primeiro-Ministro Cavaco Silva e tive a sensação de que nos entendíamos.

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O que pode significar “re-humanizar o mundo”? O mundo algum dia foi humano, depois foi desumanizado por alguém e agora vai ser humanizado novamente? Esta é uma interpretação racional do estado do mundo? Passado e presente? E deveríamos passar do mundo desumanizado de hoje para algum mundo futuro, hipotético e desconhecido, ou deveríamos retornar humildemente a instituições e padrões de comportamento historicamente comprovados? Como conservador e pessoa idosa, temo mais o Admirável Mundo Novo do Admirável Mundo Novo do futuro previsto por Aldous Huxley no seu famoso livro do que o mundo de hoje.

Hoje, tenho medo das tentativas crescentes de acabar com as tradições, os costumes, o bom senso, a ponderação ou a decência. Tenho medo de slogans, planos ou projetos progressistas e de todos os ataques ao passado histórico, às tradições e à cultura herdada. Quando extrapolo as modas e tendências de hoje, prefiro manter-me no presente. Digo isto como alguém que está frustrado com a autodestruição do Ocidente e que não tem ilusões sobre o presente.

Para melhorar o mundo de hoje, e portanto talvez a ideia seja “re-humanizar” o mundo, é necessário um regresso a um mundo centrado no homem. O homem deve voltar a ser o ponto focal da sociedade e a sua liberdade deve continuar a ser o princípio axial (chave) das nossas ações.

O que seria necessário?

  1. Estou convencido de que devemos regressar às ideias que nos surgiram nos séculos e milénios passados, àquilo que herdamos dos nossos pais e avós. Significa esquecer os slogans “destruir a cultura”, “livrar-se do passado”, etc.
  2. Devemos rejeitar as ideias e práticas associadas à armadilha do género, parar de negar a natureza biológica do homem e da mulher e parar de endoutrinar os nossos filhos e netos com as ideias desta ideologia destrutiva.
  3. Devemos continuar a defender a família tradicional do homem e da mulher (e a sua função reprodutiva exclusiva), pois é a base insubstituível de uma sociedade humana saudável e com sentido.
  4. Devemos defender a entidade política básica da civilização ocidental, o Estado-nação, que é o único espaço adequado para a democracia. Não devemos esquecer que a democracia exige cidadãos, não apenas habitantes. A democracia não pode, portanto, ser assegurada em entidades maiores – em impérios ou continentes. A democracia não pode existir ao nível de entidades para-continentais como é o caso da União Europeia. Nem pode a democracia existir a nível planetário. Precisamos de um Estado-nação porque as pessoas vivem em culturas, histórias, tradições e línguas nacionais.
  5. Devemos regressar à política em vez da politiquice, à política parlamentar, aos partidos políticos ideologicamente bem definidos. Sem eles, os mecanismos democráticos não podem funcionar. As ONG não podem substituí-los.
  6. Na esfera das ideias devemos regressar às tradições do humanismo europeu, à era da razão, às ideias do Iluminismo que se caracterizavam pelo respeito pela liberdade individual, pelo mercado livre com direitos de propriedade bem definidos, pela livre troca de ideias e visões no respeito pelas diferentes opiniões. Nas últimas décadas, a razão tem retrocedido. Foi substituída pelo politicamente correcto, que exclui a discussão pública livre e bloqueia a capacidade de a sociedade resolver racionalmente os problemas que enfrenta.

Foi assim que pude imaginar a eventual re-humanização do mundo. Não sou um ativista político. Não sou um sonhador. Fico com os pés assentes na terra. Não tentemos predeterminar o futuro dos nossos filhos e netos. O melhor que podemos deixar às gerações futuras é uma sociedade livre e democrática. Políticas realistas e pragmáticas requerem pequenos movimentos, mas na direcção certa.

Nota editorial:

Argumentos apresentados na conferência “Re-Humanize the World”, Cascais, 1 de Setembro de 2023.

Václav Klaus é Economista e Professor de Finanças. Foi presidente da República Checa de 2003 até 2013 e primeiro-ministro entre 1992 e 1997. Intelectual de reconhecida craveira internacional, é um dos mais importantes políticos europeus desde a queda do comunismo.

Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.