Primeiro, dois elogios sinceros. É bom o governo usar uma matriz de risco para orientar e apoiar as suas decisões e é bom que partilhe os critérios de decisão de forma transparente. Uma matriz de risco tem a capacidade de sintetizar informação sobre diferentes variáveis relevantes e tornar os trade-offs entre elas mais claros. As fórmulas e modelos matemáticos são absolutamente imprescindíveis para a análise científica e estatística (a qual, claro, deve ser acompanhada do “saber de experiência feito” de epidemiologistas com carreira firmada), mas são necessariamente obscuros para o cidadão médio. Por isso, devem ser complementados com algo que junte o melhor do rigor das análises com a capacidade de comunicar de forma clara os critérios que subjazem às decisões tomadas. A Matriz de Risco é útil para isso.

Dito isto, a matriz 2×2 que o Sr. Primeiro-Ministro apresentou é muito pobre e quase parecia uma piada. Primeiro, é pobre substantivamente, porque erra grosseiramente na escolha das duas variáveis críticas para a avaliação global do risco epidémico. Segundo, é pobre formalmente, porque uma matriz 2×2 apenas permite 4 situações possíveis, ao admitir apenas dois níveis de valores para cada uma das variáveis selecionadas. Ora, para poder acomodar os 5 níveis de risco propostos no trabalho de Raquel Duarte e Óscar Felgueiras seria exigível, no mínimo, uma matriz 3×3 (que permite 3×3=9 situações), mas é desejável termos uma matriz mais ampliada, 4×4, pela riqueza adicional que traz (permitindo 4×4=16 situações), sem que isso complique a análise ou dificulte a compreensão da mesma (desde que bem apreendida e apresentada).

Há 5 variáveis consensualmente tidas como importantes na avaliação da situação epidemiológica: (i) número total de casos novos, (ii) número de internados em UCI, (iii) número de internados não em UCI, (iv) taxa de crescimento de novos casos (Rt) e (v) taxa de positividade na testagem. Há outras variáveis, mas estas são as principais.

De seguida apresentamos as duas matrizes que propomos para uma análise robusta e mais fina do risco epidémico, começando, de modo indutivo, pela identificação das duas variáveis críticas a constar da matriz principal, a MARE – Matriz de Avaliação de Risco Epidémico.

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1 Eixo Horizontal da Matriz de Avaliação de Risco Epidémico (MARE)

O eixo horizontal da Matriz de Avaliação de Risco Epidémico (MARE) deve ter a variável mais relevante, que é, naturalmente, o “Número de Internamentos em UCI”. Isto é inegociável. Porquê? Porque há 1 ano que a narrativa por detrás de inúmeras medidas tomadas teve por base evitar o colapso do SNS e, em particular, o das UCI. Todos sabemos que pode haver um crescimento nos casos sem tradução proporcional em casos de UCI. Isto é tanto mais verdade e relevante quando temos em conta que (1) existe hoje mais imunidade na população; (2) as vacinas contribuem para a diminuição de casos graves, que venham a necessitar de internamento em UCI; e (3) no curto prazo, a gravidade expectável dos casos, com a melhoria das condições meteorológicas, tenderá a ser menor.

2 Eixo Vertical da Matriz de Avaliação de Risco Epidémico (MARE)

No eixo vertical deveremos ter algo que caracterize a “Tendência de Evolução” da variável no eixo horizontal, ou seja, a evolução previsível no número (líquido) de internados em UCI.

Esta previsão não é simples, pois depende essencialmente de três fatores: (a) novos casos diários; (b) taxa de crescimento de novos casos (ligada ao Rt); e (c) taxa de conversão de novos casos em internados em UCI. Esta última variável é não só relevante, como, à medida que o plano de vacinação avança, crescentemente relevante, já que, segundo todos os especialistas, um dos efeitos das vacinas é evitar o número de doenças graves e de morte (ainda que, ao que indicam os estudos mais recentes, não permita evitar a transmissibilidade ou ser-se infetado).

Se assumirmos, por simplificação (e voltaremos a isto no final), que a taxa de conversão de novos casos em internados UCI se mantem constante, podemos então cingir-nos às outras duas variáveis para chegar à tipificação da Tendência de Evolução de novos casos, que propomos inclua 4 níveis: Crescente e Intensa; Crescente e Moderada; Estável; e Decrescente.

Esta tipificação é feita na matriz que apresentamos de seguida, a MATE – Matriz de Avaliação da Tendência de Evolução (de novos casos), a matriz auxiliar, da qual resultará o indicador do eixo vertical da MARE.

3 MATE – Matriz de Avaliação da Tendência de Evolução (de Novos Casos)

Esta matriz 4×5 tem no eixo horizontal a Taxa de Crescimento de novos casos, medida através do Rt médio (dos últimos 14 dias), considerando 4 níveis: Baixa (Rt < 0.95), Média (Rt entre 0.95 e 1.05), Alta (Rt entre 1.06 e 1.15) e Muito Alta (Rt acima de 1.15). Estes valores são naturalmente discutíveis. A escolha de 4 níveis é, em nosso entender, o trade-off adequado entre rigor e síntese: 5 níveis seria obviamente mais rigoroso, mas complicaria bastante mais a análise que se pretende realizar; 3 níveis seria naturalmente menos rigoroso e não a simplificaria muito mais. É essencial ter “boa variabilidade” neste indicador, e 4 intervalos permite-nos isso mesmo.

No eixo vertical temos a Incidência, medida pelo Número Total de Novos Casos por 100 mil habitantes, que pode tomar os 5 níveis descritos na matriz em baixo e que são facilmente entendíveis.

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Cruzando as duas variáveis obtemos os 4 tipos de Tendência de Evolução propostos: Crescente e Intensa; Crescente e Moderada; Estável; e Decrescente. Claro que a avaliação da matriz, tal como (e estamos a repetir-nos) a escolha dos valores exatos, é subjetiva e sujeita a refinamentos. O contributo essencial que pretendemos dar visa a “estrutura” principal das duas matrizes propostas, como elemento importante de apoio à decisão, por ajudarem a cruzar informação complexa e a comunicá-la de forma mais clara.

4 MARE – Matriz de Avaliação de Risco Epidémico

Construída a MATE, matriz auxiliar que determina a Tendência de Evolução (de novos casos), voltamos à matriz principal, a MARE, que considera, no eixo horizontal, 4 níveis para a Ocupação de Camas em UCI com Covid-19 (Baixa, Média, Alta e Muito Alta) e, no eixo vertical, os 4 tipos de Tendência de Evolução que saem da avaliação feita na MATE.

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Com esta matriz, a tomada de decisões fica mais clara e suportada. É evidente que o Sr. Primeiro-Ministro nunca tomaria decisões apenas baseado na matriz algo infantil que apresentou – a matriz simplista 2×2 que só considera dois intervalos para o Rt e dois intervalos para o número de novos casos, sem sequer considerar a variável crucial, o número de internados em UCI.

Os 5 níveis de risco aparecem na MARE com boa variabilidade, no cruzamento de diferentes níveis das duas variáveis críticas. É aqui inevitável referir que o trabalho de Raquel Duarte e Óscar Felgueiras apresenta uma falha grave ao caracterizar os 5 níveis de risco sem permitir o “cruzamento” de diferentes níveis para cada uma das variáveis. No trabalho que apresentam parece até que as variáveis estão sempre perfeitamente correlacionadas. Não estão! E é pouco sério, academicamente falando, não permitir “variabilidade” entre elas, quando esse é exatamente o valor acrescentado que se procura neste tipo de análise multi-variada. Vejamos o seguinte exemplo.

É possível co-existirem um Rt elevado e um número baixo de novos casos com um número baixo também de internados em UCI. Temos, por exemplo, de poder cruzar um Rt de 1.1 ou mesmo de 1.2 e um número baixo de novos casos – dos quais resultaria, usando a MATE proposta, uma tendência de evolução “estável” ou “crescente e moderada” – com um número muito baixo de internados em UCI, como 100 ou 150, sem entrar em pânico. Neste exemplo, o risco correto, expresso na MARE, seria de nível 1 ou 2, nunca de nível 5. Não podemos achar que sempre que o Rt seja 1.1 estamos em nível 5! Um Rt médio de 1.1 durante 14 dias implica que os novos casos quadriplicam. Não podemos achar que existe nível 5 de risco se as UCI estiverem com 100 camas ocupadas e o número casos subir em 14 dias de 200 para 800, ou mesmo de 500 para 2.000! Mesmo um Rt de 1.15 durante 14 dias – que implicaria a multiplicação de casos por 7, ou um Rt de 1.2, que implicaria a multiplicação de casos por 12, não teria de levar a atribuição de nível 5 de risco. Depende do ponto de partida, como referiu (entre muitos) Gabriela Gomes. Quando o número de novos casos é muito baixo, um Rt alto quer dizer muito pouco. Cenários de Rt de 1.1 ou 1.2 devem com certeza levar a avaliações e precauções, mas a histeria tem de ser evitada. Mais uma vez, o valor acrescentado deste tipo de análise matricial reside exatamente em conseguir cruzar valores mais altos numas variáveis com valores mais baixos noutras, e assim incorporar importantes trade-offs e efeitos cruzados em todas elas.

Em suma, a MARE permite tomar decisões tendo por base três das cinco variáveis consensualmente tidas como essenciais para avaliar o risco de colapso das UCI, estando a principal delas no eixo horizontal e as outras duas refletidas no seu eixo vertical. Sobre as restantes duas importantes variáveis omitidas nesta análise:

  • Taxa de positividade: por estar grandemente refletida (correlacionada) com o binómio “Novos Casos” e “Rt”, espelhado na MATE, não acrescentaria muito à análise. (Mas deve naturalmente ser considerada e, caso a testagem em massa avance, ter em conta o crescimento da proporção de Falsos Positivos, por mero efeito estatístico, resultante, qualquer que seja o nível de Especificidade, da simples aplicação do Teorema de Bayes);
  • Taxa de Conversão de Casos Gerais em Internamentos UCI: pode ser tida em conta simplesmente revendo, à medida que ela varie (e, com a vacinação a avançar, espera-se que decresça), os valores no eixo vertical da MATE – ou seja, os valores considerados para cada nível de Incidência (Muito Alta, Alta, etc).

5 Notas finais

As matrizes aqui apresentadas podem e devem ser usadas a nível nacional e regional.

Primeiro, a MATE, depois, a MARE.

Há inúmeras outras questões a ter em conta na decisão política – económicas e sociais; de saúde mental e emocional, em particular nas crianças, idosos e mais frágeis; e ligadas a liberdades e direitos fundamentais. O intuito aqui foi contribuir para uma melhor estruturação e sistematização da informação relevante para a tomada de decisão pública e sua comunicação, no que concerne à avaliação do risco epidémico (considerando como risco essencial o risco de colapso das UCI).

Existem, no campo da epidemiologia e estatística, outras questões relevantes que afetam algumas das análises aqui referidas, nomeadamente as que dependem dos resultados dos Testes PCR – mas isso seria tema para uma outra reflexão.