Era segunda-feira e estava eu a tomar o pequeno-almoço, enquanto me preparava para uma nova semana de trabalho. Lia desatentamente títulos de notícias que tinha acumuladas na caixa de entrada do e-mail, e entre os vários vai-e-vens políticos de perder o fio à meada e sugestões de espetáculos aos quais me falta tempo para ir, houve um que sobressaiu: “Intimidade feminina devassada” lia-se, em letras gordas, que tornavam impossível não dar seguimento à notícia.
Comecei a ler. Ao contrário dos outros artigos, nem o sono matinal estava a tornar a minha leitura mais lenta ou desatenta. Pelo contrário – à medida que avançava, mais difícil se tornava largar aquele assunto. Em proporcionalidade inversa, a minha vontade de tomar o pequeno almoço foi decrescendo, até ao ponto em que se tornou nula.
Infelizmente o sentimento de estar agarrada a uma leitura não vinha pelos mesmos motivos daquele que aparece quando se lê um bom romance. Desta vez, era fruto de um misto de raiva, incredulidade, repulsa e incompreensão.
70 mil pessoas – este é o número dos integrantes do grupo de Telegram que foi descoberto recentemente, onde para entrar basta abrir mão de 20€ e de qualquer réstia de humanidade que possa ainda ter lugar. 70 mil pessoas que, todos os dias, partilham entre si milhares de fotografias íntimas de mulheres sem consentimento.
Entre variadas categorias e segmentações, a experiência assemelhar-se-ia quase como a de uma ida ao mercado. Há de tudo para todos os gostos. Só que neste caso não são frutas nem legumes que estão expostos, mas sim raparigas cujo único mal que fizeram foi o de existir.
Um dos tópicos mais populares chama-se voyeur, e consiste na partilha de fotografias de mulheres em situações do quotidiano tão singelas como a de uma ida ao supermercado ou a uma bomba de gasolina. Outros canais têm ainda como propósito o envio de fotografias de familiares ou das próprias mulheres tiradas na privacidade da sua casa. No cúmulo da vulnerabilidade. Se nem aí nos podemos sentir seguras, então onde poderemos?
É comum ouvirem-se justificações que tentam contextualizar a barbaridade que é a partilha de imagens não consensuais. Seja a roupa que era desadequada, ou mesmo a falta de cuidado em partilhar uma fotografia íntima (ela devia ter pensado melhor antes de enviar, já se sabe como é que estas coisas se espalham!). Embora não sejam argumentos válidos per se, dado que põem a culpa do lado da vítima, estes casos específicos de partilha de imagens sem consentimento nem conhecimento da sua existência vêm ainda arrebatá-los completamente.
O ponto que, ao deparar-me com esta história, me deixou mais desconfortável e fora de mim, não foram apenas os atos horrendos cometidos na cobardia de uma conta anónima de Telegram. Que existem pessoas perversas, infelizmente, já eu sabia. Foi o facto de estes atos horrendos virem de 70 mil pessoas. Número suficiente para encher o estádio da Luz e deixar ainda uns quantos milhares à porta. Foi a confirmação de que a objetificação da mulher é ainda um problema estrutural e massificado.
Não estamos aqui a falar de uma tendência nova. A desigualdade de género tem vindo a acompanhar a evolução da sociedade, felizmente tendo já registado avanços extraordinários. O acesso à educação em Portugal pode estar já democratizado, o direito de voto normalizado, e é factual que cada vez vemos mais mulheres em cargos de liderança – embora haja ainda um longo caminho a percorrer. Mas, para todos aqueles que apelidam as discussões em torno dos direitos da Mulher de extremistas e desnecessárias, vem aqui a prova de que é ainda um tema urgente de ser tratado e falado. Porque, embora existam casos de homens vítimas dos mesmos males (que não devem, em circustância alguma, ser tratados com qualquer leviandade), estes não acontecem de maneira generalizada. Não concebemos a ideia de um estádio de futebol cheio de mulheres a trocar fotografias de homens tiradas sem consentimento e a partilhá-las entre si porque estão lá “todas para o mesmo” (palavras usadas num dos fórums).
E, embora ser mulher nos dias de hoje se tenha tornado bastante mais fácil do que seria há uns anos, a verdade é que no que toca à sexualização da mulher os tempos que vivemos são cada vez mais escuros. O desenvolvimento da internet e da tecnologia tem vindo a acentuar os perigos desta objetificação massificada, ajudando a escalar o seu efeito até ao ponto em que uma simples imagem (seja ela real ou mesmo gerada por inteligência artificial) pode perpetuar e destruir uma vida para sempre. Tudo à distância de um click.
Um click, uma partilha, um gosto, um comentário. Tudo ações aparentemente pequenas, mas que têm em si o poder de tratar cada protagonista de uma fotografia ou vídeo como mais uma cara ou mais um corpo, esquecendo que o que está em causa é a intimidade de alguém. De uma pessoa. Com medos e sonhos, ambições e opiniões. Uma pessoa.
Falo então agora, enquanto mulher, para qualquer homem que me queira ler.
Vocês não sabem o que é andar na rua à noite e temer não pela carteira, mas pela vida. Pensar duas vezes antes de pôr uma saia para ir beber um copo ao Bairro Alto porque é mais seguro e confortável passar despercebida. Pagar menos do que um homem ao entrar numa discoteca e sentirem-se como mercadoria barata – acreditem, os 5€ extra iam custar muito menos a sair-me do bolso do que a conceção de me saber meio para um fim.
E ainda bem que não sabem. Porque nenhum ser humano devia saber como é sentir-se assim.
Peço-vos, então, que levem esta notícia com seriedade. Que ajudem a recuperar o fosso entre Homens e Mulheres e que façam parte da luta Feminista. Entre tantas polémicas, parece que o verdadeiro significado desta palavra fica muitas vezes esquecido, mas deixo aqui a definição que as Nações Unidas lhe dá, para que se recordem: o movimento Feminista é aquele que defende a igualdade de direitos sociais, políticos, legais e económicos entre homens e mulheres. Não supremacia. Igualdade. Parece-vos um pedido assim tão extremo?
Bem sei que a minha amostra pode ser pequena e pouco representativa, mas até agora quase só vi esta notícia ser partilhada por mulheres. E é aqui que vocês podem entrar: nada vai mudar se esta luta continuar a ser só nossa. Sensivelmente metade da população do mundo é composta pelo sexo feminino. Se afeta metade de nós, porque não deverá ser um problema de todos?
Partilhem, falem, eduquem. Façam esta notícia chegar aos vossos filhos, irmãos e amigos. Não riam com leveza quando alguém faz uma “piada” que objetifique uma mulher – acreditem, para nós não é uma piada. Acima de tudo, ajudem as novas gerações a ver a sociedade com outros olhos, uns que vejam a humanidade que existe por detrás de todo e cada um. Se educarmos os nossos filhos, não teremos que temer pelas nossas filhas.
Podemos contar convosco?