As eleições autárquicas são o pilar fundamental de qualquer democracia evoluída. O poder autárquico e o seu exercício aproximam as pessoas do poder e, ao mesmo tempo, tornam patente a necessidade, eu diria a urgência, da participação de todos na gestão da cidade e na defesa do bem comum.

Os concelhos e as freguesias (e antigamente as paróquias) são o nosso chão comum primário, comunidades de pertença fundamental, espaço privilegiado de realização humana, só ultrapassados em importância e proximidade pela célula familiar.

Não é casual a forte tradição municipalista entre os monárquicos. Desde logo nos neo-intregralistas, como Ribeiro Telles, Jacinto Ferreira ou Barrilaro Ruas, que viam na valorização do poder local, e nas suas instituições profundamente humanistas e personalistas, uma forma de promoção da liberdade das comunidades – logo dos indivíduos – contra a cegueira do centralismo macrocéfalo, economicista, burocrático e quantas vezes ideológico. Um efectivo contrapeso à tendência que os grandes poderes têm de se auto-alimentarem e de se distanciarem da realidade micro das pequenas comunidades.

O grande Leviatã de Thomas Hobbes prefere a indistinção e a padronização, a docilização e a domesticação dos indivíduos, ainda que esse fenómeno acarrete o seu alheamento da política, ou seja, a abstenção na construção e a preservação do que é de todos.

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De facto, os neo-integralistas perceberam-no cedo: só em sociedades muito evoluídas e participativas, chamemos-lhe “intrinsecamente democráticas”, é possível que a figura de topo do Estado seja “não eleita” porque historicamente e constitucionalmente legitimada. Refiro-me ao Rei – primo interpares.

Ao contrário do que emana de uma visão parcial e superficial, veiculada pelo discurso dominante e autojustificativo do poder vigente em Portugal, afinal uma monarquia moderna, sustentada na instituição real, genuinamente imparcial e agregadora, é, nos dias de hoje, penhor da liberdade dos cidadãos nos países europeus mais desenvolvidos, em sociedades profundamente empenhadas na gestão da “rés-pública”.

É portanto, para um monárquico, um pequeno consolo o frenesim que por estes dias se verifica com tantas dezenas de milhares de pessoas mobilizadas de Norte a Sul do País para as eleições autárquicas, tantas vezes maldosamente caricaturadas pelas pseudo-elites urbanas, caixa de ressonância dos insaciáveis apetites uniformizadores e repressivos do “Terreiro do Paço”.

Dever-nos-íamos congratular com isso. Se quisermos tirar um retrato e fazer um diagnóstico de como somos e de como funcionamos como povo a cuidar dos nossos e do que é nosso, atentemos na participação e dinamismo de umas eleições autárquicas.

Mas, a propósito de autarquias, o tema de que vos quero falar hoje é sobre a minha querida cidade de Lisboa e o seu aparentemente irreversível processo de despovoamento. Uma dinâmica muito preocupante a que assistimos, impotentes, há várias décadas.

Passei a minha meninice e juventude entre a Baixa, a Avenida da Liberdade, Bairro Alto, Madragoa, Estrela e Campo de Ourique, e sou testemunha de como há uma cidade que se extingue todos os dias e que antes fervilhava de famílias, de comércio, de serviços.

Era uma cidade velha, bem sei, mas com agitadas e populosas freguesias que hoje não oferecem eleitores que remuneram os partidos políticos. Por vezes essa minha cidade confunde-se com um gigantesco aldeamento turístico com ocupação sazonal, sem alma, sem identidade, sem pertença, sem economia. Sem crianças. E esse é o pior dos sintomas: não há mais crianças no casco velho da nossa cidade, das suas janelas ninguém nos espreita. A velha (ou nem tanto) Lisboa, com as restrições da Covid-19 às tantas parecia-se com um parque temático de Hollywood… encerrado.

Lisboa sempre foi uma cidade de partidas, mas principalmente de chegadas com que sempre se renovou. Hoje é praticamente só de partidas – de uns para a periferia, dos outros mais afoitos ou aflitos para o Mundo.

Como é que deixámos as coisas chegar a este ponto?

De nada nos serve apontar culpados. Interessava mesmo saber como, e se algum dia, poderemos inverter esta dinâmica de morte, atrair novas gerações para uma cidade sem economia, sem vida própria, que é e será sempre única nem que seja pelas suas pedras e a história que ecoam. É credível a promessa de riqueza e de futuro? Será a Lisboa das suas gentes uma Causa perdida?

Interpretem este meu pessimismo como uma provocação com o intuito de agitar as águas e promover uma mudança na cidade. Na nossa querida Lisboa.

* Texto adaptado da minha introdução ao debate do passado dia 9 de Setembro organizado pela Real Associação de Lisboa entre as candidaturas à CML, subordinado ao tema “A gentrificacão e a sustentabilidade das cidades antigas”.