No  fomingo à noite, a Europa sofreu um novo abalo sísmico. Desta vez, num dos países fundadores da União Europeia. A direita mais dura chegou ao poder em Itália com Giorgia Meloni a preparar-se a ascender ao cargo de primeira-ministra. A confirmar-se, será a primeira mulher de sempre na Europa do Sul a aceder a tal cargo depois de eleições, um momento simbólico que não deve ser desvalorizado. Antes de continuar este artigo, noto aqui que vivi durante cinco anos em Itália. Depois de já ter vivido noutras latitudes durante vários anos, considero Itália o país mais maravilhoso do mundo. Isto não me habilita especialmente para falar sobre as eleições neste país, até porque Itália, tal como o Brasil, não é para principiantes. Habilita-me, no entanto, a dizer que, da minha experiência, Itália não tem um quarto da população composta por xenófobos, misóginos e racistas.

Antes de falar das causas próximas da eleição de Meloni, vejamos o contexto. Itália está há vinte anos estagnada economicamente. Depois do milagre económico do pós-guerra, que levou Itália a ser um dos países mais ricos e desenvolvidos do mundo durante a segunda metade do século XX, os últimos vinte anos foram um desastre. Os dados económicos podem surpreender. Até 2005, os dados do Banco Mundialmostram que Itália era mais rica do que o Reino Unido e era tão rica como a Alemanha, medidos em PIB per capita a preços constantes em paridade de poder de compra. Desde então, o país tem vindo a perder lugares relativos na União Europeia e a testemunhar a fuga de milhares de jovens que partem para outros países em busca de oportunidades de emprego. Ainda utilizando o medidor do Banco Mundial, Itália tem hoje uma posição não só relativa, mas também absoluta pior do que no início dos anos 2000. O declínio do estatuto de Itália e dos seus votantes é indesmentível.

Em segundo lugar, a crise dos refugiados teve (e tem) um peso desproporcional em Itália. A União Europeia assinou em Dublin, em 1991, um tratado que visava o tratamento comum dos refugiados. Todavia, na prática, quase todos os países, com a excepção da Alemanha, deixaram Itália sozinha para lidar com os problemas na fronteira sul. Recai sobre Itália todo o esforço financeiro, logístico e social de receber a esmagadora maioria dos refugiados Africanos que tentam chegar à Europa de barco. Em 2015, a CNN realizou uma reportagem sobre crianças que se prostituíam em redor de Roma Termini, a principal estação de comboios de Roma, para pagarem as dívidas contraídas para cruzar o Mediterrâneo. Apesar dos apelos continuados à solidariedade europeia, Itália ouviu sempre um rotundo não, especialmente dos seus vizinhos franceses que, agora, pela voz da primeira-ministra, aparecem preocupados com os direitos humanos no país do Renascimento. A hipocrisia em todo o seu esplendor.

Em terceiro lugar, os últimos anos viram despontar em Itália aquilo que poderemos designar de tecno-democracia, isto é, uma democracia esvaziada da sua componente popular e maioritária, na qual os eleitores escolhem os políticos nas urnas. Pelo contrário, em dois momentos, com a ascensão de Monti e, mais tarde, de Draghi, as forças exógenas da União Europeia conseguiram colocar um primeiro-ministro no poder, o qual, apesar de tolerado pelas duas câmaras do parlamento italiano, não emanava verdadeiramente da vontade popular.

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Face a este caldo de cultura, alguém fica espantado que uma populista como Meloni, auxiliada por um geriátrico Berlusconi e por Salvini ascenda ao poder? Pelo contrário, em minha opinião, seria surpreendente que os eleitores italianos, depois de experimentarem (quase) tudo ao longo dos últimos vinte anos, tirando a extrema-esquerda ex-comunista, não acabassem por chegar a um momento em que iriam ceder à tentação das soluções fáceis.

As eleições de domingo foram analiticamente interessantes. Em primeiro lugar, tiveram a mais baixa participação eleitoral da democracia italiana do pós-guerra, com apenas 63.8% dos eleitores a irem às urnas. A descida da participação eleitoral aponta para um desencanto com as soluções propostas e com a oferta partidária. Em segundo lugar, pela primeira vez na história, as regiões da Toscana e da Emilia Romagna têm uma maioria de direita. A perda destes bastiões históricos da esquerda demonstra a nacionalização da vitória da direita nas eleições de domingo.

Finalmente, como afirma Leonardo Carella, um cientista político italiano de Oxford, estas eleições são, acima de tudo, de continuidade e não de ruptura. São a continuidade da grande coligação social e política montada por Berlusconi e Lega Nord, alicerçada no anti-comunismo, o desejo pela baixa de impostos, a clivagem entre o Norte industrial e rico e o Sul pobre e agrícola, a luta contra a mudança de valores e ainda a perda relativa de status, que tão bem foi analisada pelos cientistas sociais na explicação do fenómeno Trump. Esta coligação teve já várias declinações. Em 1994, 2001 e 2008, Berlusconi ganhou as eleições com esta coligação eleitoral. Em 2022, Meloni articulou um discurso para mobilizar esta massa de eleitores, prometendo mudança e um virar de página. Tal como os seus antecessores, a mudança não chegará. E isso, neste caso, é bom. Felizmente, Itália tem uma democracia e sociedade civis suficientemente fortes e cheia de pontos de veto que impedirão grandes aventuras e flutuações à la Órban.