Tens de acreditar em ti! — É assim que tudo começa.

Depois dum jogo de futebol em que gritam, incentivam, vibram e se arrepiam — e a seguir a um banho prolongado e a um lanche, mesmo antes do almoço — quando, finalmente, os jovens jogadores de futebol saem do balneário, são muitas as mães que, incomodadas com a insegurança dos seus filhos em vários momentos do jogo, desabafam:

“Tens de acreditar em ti!”

Talvez a primeira questão que surja daqui possa ser: de onde nos chega a confiança que temos em nós? E, já agora, quando ela falta, de que forma se consegue resgatar para que passe a existir?

Comecemos, metodicamente, pelo princípio. “Tens de acreditar…”, mais do que um desafio motivacional, acaba por ser um desabafo entre o persuasivo e o imperativo. “Tens” significa “deves!”. Ou, de certa forma, “precisas”. Ou, mesmo, “é indispensável”. Ou “é incontornável” que sejas capaz. Ou, por fim, “não há como venceres sem acreditares”.

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É claro que fosse ele capaz disso e um atleta de sete ou de oito anos acreditaria sempre em si. Se não acredita, isso deve-se a uma fragilidade emocional (qualquer coisa que resulta duma espécie de “defeito de fabrico”), que se estende a todas as tarefas em que se envolve, ou circunscreve-se, por exemplo, ao futebol e nada mais? Por mais que pareça um distúrbio da sua personalidade, para a insegurança duma criança contribuem as exigências subliminares e as expectativas que os pais colocam sobre ela. Os sonhos e as confabulações que faz sobre si própria e que testa de cada vez que vai a jogo. A forma como se compara com os outros. O modo como quem a ensina a leva a acreditar que virá a ser capaz de conseguir. O modo como se avalia, considerando um conjunto de variáveis que são úteis à prossecução daquela tarefa, em particular. Etc. Isto é, a forma como um atleta não acredita nele próprio, num dado momento, não é uma questão mais ou menos misteriosa relativa à sua vida afectiva. Essa “baixa auto-estima” será a ponta de um icebergue onde se acumulam análises sobre análises que, de forma intuitiva, acaba por fazer em relação aos seus desempenhos, quando se trata de os mobilizar para uma dada tarefa onde é suposto que tenha um conjunto de resultados.

A forma como não acreditamos em nós não é uma fragilidade de personalidade mas uma competência cognitiva. (Não tanto uma incompetência…) Acaba por ser o produto final de todos os algoritmos de todas as experiências e de toda a sabedoria sobre tudo o que, instante a instante, se analisa e com que, passo a passo, se avalia e se decide. Mesmo quando, aparentemente, aceitamos o que quer que seja “sem pensar”, o que está em causa é que pensar é cruzar algoritmos e, com base neles, decidir. Como se entenderá, um processo desses dá-se, no máximo, em centésimos de segundo. O que é notável! Mas nunca é ou preto ou branco. Nem nunca representa um conflito entre uma competência e um medo. Mas entre inúmeras competências e muitos obstáculos que resultam de todas as experiências que fazem parte de nós. A confiança não é uma forma de contornar os conflitos; nasce e cresce com eles. Assim não se fuja nem deles nem das inseguranças que avivam.

Se preferirem, duma forma mais enfática, aquilo a que, durante dezenas de anos, se chamou inconsciente (e que foi interpretado como uma força mais ou menos obscura, reactiva ou impulsiva, com características claramente animais que nos inquinaria, em muitos momentos) representa estes algoritmos inacreditáveis que mapeiam sabedoria e experiência e nos levam a pensar mesmo quando, aparentemente, não o fazemos. É por isso que este nível de consciência, que opera vinte e quatro horas sobre vinte e quatro por dia, é a fonte da sabedoria humana. Sempre activa. Sempre atenta. Sempre interventiva. Mas nem sempre alinhada com todas as decisões que resultam da forma como racionalizamos através de outros níveis mais superficiais da consciência. O inconsciente analisa e pensa, muitas vezes, muito melhor.

As dificuldades que a informação que resulta destes algoritmos nos traz tem a ver, sobretudo, com a forma demasiado ansiosa e pouco lógica como nós a interpretamos. Reagimos a ela de forma pouco pensada, muito impulsiva, muito assustada, pouco em perspetiva; muito afunilada. O que, regra geral, sendo nós tão competentes para pensar e para conhecer, não contribui para solucionar os obstáculos que geram a insegurança e nos impedem de acreditar. Antes os ajuda a alicerçá-la. Logo, “Tens de acreditar em ti!”, ao contrário daquilo que uma mãe imagina quando o afirma, empurra uma criança para a responsabilidade dela própria solucionar sozinha uma dificuldade que precisa de configurar, primeiro, para que, depois, a entenda e, a seguir, a resolva. (Não é tão fácil nem tão rápido assim, acreditar!) O que, ao fazer-se sozinho, se torna mais difícil, mais penoso e mais susceptível de uma rendição à insegurança.

Por tudo isto, o mercado motivacional (que vai desde os inspiradores motivacionais aos influenciadores aos coatchs, aos tutoriais ou aos autores de auto-ajuda), dirige-se, todo ele, no mesmo sentido do “Tu vais conseguir” ou “Tu és capaz!”. Que, na pandemia, fez com que todas as escolas tivessem um papelinho com um arco-íris a dizer “Vai ficar tudo bem”. E presume que da insegurança à confiança e à motivação se vai com a ajuda dum empurrãozinho. O que é um absurdo. Achar que os discursos motivacionais levam a que da insegurança se “salte”, facilmente, para o acreditar — sem que se passe pela necessidade de analisar, de compreender e de pensar — parte do pressuposto que pensar não é o melhor remédio. O que é uma forma pateta de conceber as pessoas. Ou, doutra forma, de lhes chamar patetas. Precisamos (sempre!) de perceber e de esmiuçar as dificuldades para as ultrapassar.

Do “Tens de acreditar em ti!” passemos, brevemente, à motivação. É, importante, que não se perca de vista que os resultados fazem a motivação. Mais claramente, os bons resultados. Antes deles a ancorarem, é a forma como acreditam nas nossas capacidades que faz com que acreditemos ser capazes. A motivação resulta da forma como se acredita! Antes de os resultados nos demonstrarem que somos capazes, acreditarmos que quem gosta de nós acredita nas nossas qualidades, transmite-nos uma convicção quase inabalável em características de nós próprios que imaginávamos perdidas ou que, por vezes, mal vislumbrávamos ter. Mas acreditamos, sobretudo, quando, de forma sintética e esclarecida, essas pessoas nos elencam (e, com isso, nos ajudam a perceber) os motivos pelos quais a nossa insegurança nos vai toldando. E nos persuadem, com trabalho e com método, a ser capazes de passar da insegurança ao acreditar.

Acreditarmos em nós, ao contrário das “soluções” minimalistas, supõe muito trabalho, capacidade de sacrifício, convicção, determinação e tolerância à frustração. Como dúvidas, inseguranças ou medos. Todavia, darem-nos um motivo para que acreditemos em nós nunca chega para ficarmos motivados! E “termos” de acreditar que somos capazes também é pouco. Termos de acreditar significa, com “tradução simultânea”: “Já que eu não consigo encontrar os argumentos para que tu acredites que és capaz, dependo totalmente da forma como acreditas para que, a seguir, também eu acredite em ti.” Duma forma mais rebuscada: a auto-estima que os nossos filhos não têm tem mais a ver com a forma como não acreditamos neles, por mais que deleguemos sobre os seus ombros a responsabilidade de nos levarem a acreditar naquilo que são capazes de fazer. Ou seja, “Tens de acreditar” representa uma inversão da ordem dos factores. Supõe colocar na pessoa que se tornou insegura, em função de dúvidas que mal perscruta ou que ainda não percebe, a responsabilidade de resolver, por si, sozinha, os seus problemas. Ora, o “Tens de acreditar em ti!” não considera que a resolução de um problema começa pelo modo como o formulamos. Resolver um problema sem o formular e sem nunca entender como é que se resolve não é resolver; é iludir, com um passe de mágica, uma dificuldade que não se instalou em nós por acaso. Somos demasiados inteligentes para aceitar, o que quer que seja, sem pensar.

Sendo assim, faz sentido que convençamos os outros? Como fazer para que acreditem em nós? Iludindo-os? Ludibriando-os? Ou dividindo, simplesmente, com eles aquilo em que acreditamos? Se for assim, ao contrário do que se diz, não são os problemas de comunicação que nos afastam. São as coisas nos levam a não acreditar em nós. Afinal, crer é poder. E acreditar é conseguir.

É claro que quando se “vai andando” não há como acreditar por aí além em nós. “Vai-se andando” significa que nos vamos safando. (Acontece connosco como com os atletas de sete e de oito anos que falham golos de baliza aberta.) O que é pouco quando precisamos de acreditar para se conseguir andar.

Não basta querer acredita para conseguir acreditar! Mas todos precisamos de acreditar! Nas pessoas. No amor. E na vida. E, claro, também em nós. O que num mundo que assumiu a ciência e a tecnologia como os eixos que nos dão a garantia daquilo em que é verosímil acreditar, parece “retrô” ou “démodé”. E é aqui que chegamos à fé. Acreditar supõe ter fé. Acreditar é uma emanação da fé. Mas a fé não é um conteúdo simplista ou simplório da natureza humana. A fé resulta daqueles algoritmos todos de que falávamos atrás. E dos conflitos todos e das pessoas todas até se lá chegar. No limite, acreditar é sempre um exercício de sabedoria. E de gratidão. Quando sobra a insegurança escasseia a fé.

De onde nos chega a confiança que temos em nós?

Do acreditar que fica da fé. A fé traz-nos à esperança e robustece a motivação. Talvez porque com ela desponte a alma e a paixão. E a garra. E o desejo.

E, já agora, quando ela falta, de que forma se resgata para que passe a existir?

(Fazendo, ousadamente, minha, só por momentos, uma ideia de Jorge Palma, e alargando-a, ligeiramente, a “fórmula” será:) “Enquanto houver acreditar, haverá estrada para andar. E a gente não vai parar.”