A Educação Médica tem sido parente pobre no debate público sobre Saúde. Ignorada, ou aprisionada por soundbytes como carência de médicos e vagas nas faculdades. Como em Setembro de 2019, quando, neste jornal, chamei a atenção para a necessidade de preparar as escolas médicas públicas perante o natural advento do ensino médico privado, a competitividade que daí resultaria e a necessidade de programa estruturado para idoneidade de formação especializada em unidades privadas. Recordar História e Passado tem sido exercício fútil numa cultura dominada pelo imediato. Daí, talvez, a dificuldade de compreender o presente, preparar as reformas necessárias e construir o Futuro. O tema voltou, e muito bem, à ribalta mediática graças à entrevista lúcida da Directora da Nova Medical School.
A formação dos médicos tem etapas independentes, mas interrelacionadas. Espelho da evolução da Medicina contemporânea, do impacto da ciência e da tecnologia e da organização dos serviços de Saúde. Primeiro a pré-graduação – o curso de medicina – responsabilidade das escolas médicas públicas e também privadas desde o início da presente década. Dá acesso à pós-graduação, isto é, a aquisição de treino e prática especializada, a qual decorre nos serviços assistenciais públicos e privados, com idoneidade formativa certificada pela Ordem dos Médicos (OM). É componente indispensável, razão pela qual discordei publicamente da sugestão de recurso a médicos indiferenciados, sem formação especializada, um aggiornamento dos médicos pé-descalço da revolução cultural chinesa. E, por fim, educação continuada, aprendizagem permanente – life-long learning – uma exigência da Medicina moderna e um dever de responsabilidade de todos nós, médicos e profissionais de Saúde, com a cooperação das escolas médicas, sociedades científicas, de centros de investigação e da indústria médica e farmacêutica. Deveria ter reconhecimento público, um combate que espero a OM venha a incorporar na sua missão.
Porque faltam então médicos, em especial no SNS? Tenho dúvidas sobre a contabilidade dos médicos activos e da sua extrapolação directa para o sector público. Mas persiste questão fundamental: as carências são globais, nalgumas especialidades ou em áreas geográficas definidas? A admissão nas escolas médicas continuou limitada por malévolo corporativismo perante passividade do Estado? A OM afunilou o acesso às especialidades, limitando idoneidade formativa? A organização pública da saúde tornou-se excessivamente burocrática e pouco atrativa? Cada um destes tópicos mereceria análise pormenorizada. Sobre eles escrevi, também neste jornal, e para aí remeto a curiosidade do leitor. O problema é mais complexo. Faltou Política, estruturada e consequente, com previsão de necessidades e planeamento de recursos humanos qualificados e convergência estratégica e operacional entre Ministérios da Educação Superior e Saúde, Ordem dos Médicos e da própria organização da Saúde.
Neste contexto, quais serão os desafios para a Educação Médica em Portugal nesta 3ª década do século XXI? Comecemos pela pré-graduação. Há uma regra simples: aprende-se fazendo e praticando, ensina-se pelo exemplo e pela acção. São atributos indispensáveis do futuro médico e missão indeclinável de qualquer boa escola médica sobretudo nesta era tecnológica: i) formar e educar pela ciência e pela cultura ii) fomentar o interesse pela investigação, desenvolvendo o espírito crítico e a curiosidade intelectual iii) promover capacidade de comunicação, empatia e a humanidade no trato com os doentes, colegas e outros profissionais iv) assimilar os valores da Ética, do sentido de dever médico, da responsabilidade profissional e da prestação de contas accountability. E absorver uma Cultura que reafirme a importância do conceito de Saúde global e ambiental consubstanciada na designação One Health. Requer meios modernos de apoio ao ensino, da simulação à tecnologia de informação e realidade virtual, bem como recursos humanos motivados. Onde se encontram os docentes nas áreas clínicas? Nos hospitais e centros de Saúde dependentes do Ministério da Saúde e mais recentemente em serviços privados com capacidade reconhecida.
Como professor e depois director da Faculdade de Medicina da ULisboa negociei, no passado, vários protocolos com instituições privadas e públicas para receber os nossos alunos criando uma verdadeira rede institucional para o ensino. O feedback foi muito positivo. Foi uma parceria útil e gratificante. Mas aumentar o número de vagas nas escolas públicas sem assegurar os meios adequados não será certamente uma boa medida, como foi referido na entrevista acima mencionada. Serão precisos mais diplomados em Medicina? Creio que sim, as necessidades aumentaram, consequência da demografia, da maior prevalência de doenças crónicas e necessidade de intervenção médica mais continuada. Poderá o sector privado participar? Em 2019 o Governo sinalizou e aprovou essa opção e reforçou-a recentemente, uma decisão legítima, pois vivemos numa sociedade aberta e livre onde a competitividade entre sector público e privado é indutora de progresso, desde que se salvaguardem qualidade, aporte de inovação e desenvolvimento. E há procura nacional e internacional porque Educação Superior e a formação de médicos são vocação europeia bem-sucedida. Foi um erro não termos estimulado essa procura como reconhecimento da qualidade da nossa Medicina, aumento de influência externa e selecção potencial dos melhores que quisessem ficar por cá. Não foram ouvidos os apelos das escolas médicas públicas para que pudessem organizar-se nesse sentido.
Mas a carência de médicos é também sectorial, nalgumas especialidades e em áreas geográficas. Foi consequência da burocratização dos concursos e menorização das carreiras médicas, da falta de previsão e do planeamento de recursos humanos. A pandemia não poderá servir como desculpa para tudo. A Formação Médica decorre, actualmente, nas instituições de Saúde, públicas e privadas, selecionadas por critérios de performance assistencial, indicadores de produtividade, de qualidade, organização dos recursos humanos e dos serviços, desenvolvimento e prática de investigação científica. Alargou-se a capacidade formativa global, rentabilizando também para o ensino e formação a capacidade instalada. A cooperação entre sectores público, privado e social trouxe vantagens na formação de especialistas e será, certamente, útil na pré-graduação.
O desafio actual é complexo. A Educação Médica não foi prioridade na Política de Saúde, nem na própria gestão pública. Mas tem uma missão indeclinável, para a qual todos os parceiros devem ser convocados. Reforçar o impulso académico e científico da medicina portuguesa e assim contribuir para a qualidade dos serviços prestados, alargar o âmbito de recrutamento das vocações, proteger a confiança dos cidadãos, usar criteriosamente a moderna tecnologia de informação e inteligência artificial e servir as populações. Precisaremos de mais médicos, melhor distribuição no território nacional para vencer os desafios de Saúde da população portuguesa e podemos e devemos participar no esforço internacional de Educação Médica tão necessário para uma visão global e transnacional da Saúde. A Política de Saúde deve considerar o ensino dos médicos, e também nas outras profissões da saúde, como prioridade e parceria estratégica. Que promova a sua valorização, para que sejam escolhidas pelos melhores e mais empenhados, e que possam conseguir realização pessoal e profissional e servir as suas populações. E que saiba incorporar no esforço colectivo as contribuições dos sectores público, privado e social com exigência e rigor, desde que aportem qualidade, rigor e inovação, sem que prevaleçam discriminações apriorísticas ou ideológicas.
Essa é também a missão indeclinável dos responsáveis políticos e profissionais e qualquer retrocesso terá custos muito relevantes para o Futuro.