Em vésperas da realização de Eleições Europeias, a Geórgia volta a enfrentar novos focos de contestação e tumultos sociais nas ruas de Tiblíssi. Em causa está a discussão de um projeto de lei (Lei dos Agentes Estrangeiros) que pode representar um volte-face relativamente aos compromissos assumidos com Bruxelas.

1 O Parlamento georgiano discutiu, nas últimas semanas, um controverso projeto de lei responsável por causar enorme tensão social e alvoroço mediático. Face ao teor e conteúdo do mesmo, irromperam pelas ruas da capital protestos populares de grande magnitude. Manifestantes pró-europeus insurgiram-se contra uma medida que consideram ser uma réplica legislativa utilizada por Putin para controlar e reprimir opositores do regime russo; a “Lei Russa” – termo pelo qual o projeto de lei ficou popularmente conhecido – obriga a que todos os meios de comunicação social e organizações sem fins lucrativos se registem como “defendendo os interesses de uma potência estrangeira” caso 20% (ou mais) dos seus fundos sejam adventícios. Com o pedido formal do estatuto de candidato à UE em marcha, a Presidente georgiana Salomé Zurabichvili anunciou antecipadamente que iria recorrer ao veto presidencial como forma de demonstrar a sua discordância perante esta iniciativa legislativa, mantendo-se coerente com aquilo que tem sido o seu estilo e linha de ação política. Ao rejeitar liminarmente o teor deste projeto de lei, Zurabichvili deu um sinal de compromisso para com os valores do Estado de Direito e da liberdade de expressão.
O partido no poder – o Sonho Georgiano –defende que esta lei visa preservar a transparência e soberania da Geórgia. Fundado pelo oligarca Bidzina Ivanishvili, tem vindo a fazer uma forte aposta na restituição do passado soviético; em Gori, cidade natal de Josef Estaline, foi edificado um museu em sua memória e, um pouco por todo o país, foram erguidas estátuas em sua homenagem. Porém, esta é apenas uma das várias idiossincrasias do partido e do seu fundador: Ivanishvili manteve laços comerciais com o Kremlin e sua cúpula de poder, tendo feito fortuna na década de 90 quando decidiu emigrar para Moscovo e escapar à mendicidade georgiana. As suas tomadas de posição públicas têm sido antagónicas, na medida em que chegou a defender, em tempos, uma aproximação à NATO e UE. É de estranhar, por isso, algumas das propostas do seu partido, totalmente desenquadradas daquilo que foi o seu posicionamento ideológico em tempos.

Zurabichvili sabe de antemão que o seu veto será insuficiente para impedir a aprovação deste projeto de lei; o Sonho Georgiano possui maioria parlamentar, pelo que, na prática, o seu veto terá um valor meramente simbólico. O facto de o sistema de governo ser semipresidencial confere à maioria parlamentar do Sonho Georgiano a possibilidade de suplantar esta vicissitude por intermédio dos seus 86 deputados. À data em que o leitor passa por estas linhas, muito provavelmente, a lei já terá sido aprovada.

2 Em contexto de Eleições Europeias, o alargamento da UE tem sido apontado por vários analistas políticos como um dos mais prementes tópicos de discussão e debate entre os candidatos. Para Bruxelas, este não é um tópico sui generis: na memória de Merkel e de alguns ex-líderes europeus deverá ainda pairar o inesperado rompimento dos vários compromissos bilaterais assumidos por Viktor Yanukovych para com os seus homólogos europeus. No final do ano de 2013, todos os sinais apontavam para uma aproximação política, económica e diplomática de Kiev a Bruxelas. Todavia, assim não sucedeu: o então presidente aceitou um pacote de ajuda financeira oriundo de Moscovo, gorando as expectativas dos Estados-Membros relativamente a uma eventual integração europeia no futuro próximo. O resultado? Um país à beira da guerra civil, a deserção de Yanukovych e, posteriormente, a anexação da península da Crimeia.
Com a anexação da Crimeia, Putin colmatou uma das principais lacunas geográficas da Rússia: a ausência de um porto de águas quentes navegáveis. A conquista de Sebastopol representou um progresso de natureza comercial e militar ímpar; pela primeira vez, a Rússia passou a ter um porto cujas águas seriam navegáveis, inclusive nos gélidos meses de inverno. Isto permitiu contornar as limitações sazonais que os portos de Vladivostok e Murmansk apresentavam.

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Traçando um paralelismo com o caso georgiano, as ilações a retirar parecem evidentes: Moscovo não tolerará uma aproximação da União Europeia a qualquer Estado parte da sua zona-tampão (buffer zone). Colocar em risco a integridade da sua zona geográfica mais vulnerável – a Planície do Norte Europeu – foi um erro histórico permitido a Napoleão e Hitler, mas que Putin não irá consentir. O caso georgiano é, em larga medida, uma reincidência política e geográfica do que se tem vindo a passar em solo ucraniano: as duas repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia têm historicamente provocado quezílias militares e diplomáticas que atingiram o seu pico com a Guerra Russo-Georgiana em agosto de 2008. A Ossétia, logo após o colapso da Rússia czarista e a declaração de independência da República Democrática da Geórgia, manifestou a intenção de se manter dentro da esfera de influência soviética. Moscovo fomentou desde sempre as aspirações separatistas na região, à semelhança do que sucedeu na Ucrânia com Kherson e Donetsk. Inicialmente, ao eleger um presidente próximo do Kremlin (Eduard Kokoity) e, a posteriori, com Medvedev a assinar um conjunto de decretos que reconheceram a independência das duas repúblicas separatistas. A constante presença militar russa na região e o interesse estratégico na região do Mar Negro e Cáspio indicam que uma eventual adesão à NATO por parte da Geórgia espoletará uma nova frente de guerra em tudo semelhante à ucraniana.

3 Embora pareça um truísmo afirmar que a Europa é o centro por excelência do progresso social, económico e cultural, o zeitgeist que paira sobre o Velho Continente augura tempos conturbados.
A Comissão Europeia continua a rever em baixa o crescimento das principais economias, com a Alemanha – o principal motor industrial europeu – à cabeça, apresentando um crescimento negativo de 0,2% no primeiro trimestre de 2024. O eixo franco-alemão perdeu peso político na mesa de negociações do cenário internacional e Putin volta-se agora para Pequim, fortalecendo as relações económicas e diplomáticas com vista a uma reconfiguração da atual Ordem Mundial.

A 26 de outubro realizar-se-ão eleições na Geórgia. De acordo com os mais recentes dados do Council on Foreign Relations, 88% da população georgiana pretende uma aproximação à UE. Independentemente do rumo escolhido, parece evidente afirmar que neste ato eleitoral estará em jogo muito mais do que o futuro da Geórgia: estará igualmente o da Europa e de todas as suas gerações vindouras.