O título desta crónica pretende afirmar uma distinção clara entre duas categorias de indivíduos: iconoclastas e imbecis. Com efeito, e independentemente da justeza das causas, de facto, não existem bons ou maus iconoclastas – existem apenas iconoclastas. A iconoclastia não se reveste de qualquer princípio moral, mas historicamente obedece, de facto, a uma lógica formal. Na sua origem mais ancestral, o acto de destruir uma imagem constitui-se enquanto fenómeno propiciatório e/ou mágico. Destrói-se para dominar, para punir, para inaugurar… É por este motivo que a iconoclastia esteve e estará sempre presente nos momentos de atrição e radicalização dos principais movimentos religiosos e políticos. A destruição deliberada de uma imagem, enquanto acto iconoclasta, pretende marcar o fim de um ciclo e inaugurar o início de outro. Podemos, para além da inaugural magia propiciatória, classificar a iconoclastia ao longo da história da humanidade em três tipologias distintas: por motivos religiosos; enquanto afirmação de cisões políticas e/ou ideológicas; por razões filosóficas e/ou causas socias. A inscrição dos actos nestas três categorias correspondeu, até há relativamente pouco tempo, a critérios relativamente atendíveis. Não quer isto dizer que sejam todos aceitáveis, mas a razão do acto, seja concretizado ou em forma tentada, revestiu-se até aqui de um carácter simbólico claramente lógico. Vejamos dois exemplos clássicos.
Tornaram-se célebres os ataques efectuados em 1914 na National Gallery de Londres por Mary Richardson à obra Vénus ao Espelho de Diego Velázquez. O restauro eficaz da obra não permite intuir, hoje, o grau de destruição provocado pelos sete golpes de cutelo que sofreu. Note-se, porém, que apesar de tresloucado, o acto revestiu-se de uma mitologia muito particular. Enquanto acérrima sufragista, Mary Richardson afirmava assim a sua posição de protesto contra a prisão de Emmeline Pankhurst, fundadora da Women’s Social and Political Union. A notoriedade sufragista de Pankhurst resultaria no seu reconhecimento pela revista Time, em 1999, como uma das 100 pessoas mais influentes do século XX. A justificação do acto por parte de Mary Richardson tornou-se célebre: “Tentei destruir a pintura da mais bela mulher na história da mitologia como um protesto contra o governo por destruir a Sra. Pankhurst, que é a pessoa mais formosa da história moderna”. Apesar da brutalidade inerente ao acto, existe, de facto, uma lógica simbólica e atendível. Através da destruição simbólica da mulher enquanto símbolo mitológico da beleza, Mary Richardson procurava assim inscrever uma nova categorização de mulher – um novo tempo.
Vejamos outro exemplo famoso. Após o massacre de My Lai no Vietname em 1968, a Coligação dos Trabalhadores de Arte exigiu através de uma carta aberta assinada por figuras proeminentes do mundo da arte, caso dos artistas Louise Bourgeois, Donald Judd, e Robert Smithson, que a célebre Guernica, pintada em 1937 por Picasso, fosse retirada do Museu de Arte Moderna – MoMA. A missiva de 1970 declarava que «a habitação contínua de Guernica no Museu de Arte Moderna, Nova Iorque, implica que o nosso estabelecimento tem o direito moral de ficar indignado com os crimes dos outros – e ignorar os nossos próprios crimes». No seguimento destes protestos, a 28 de Fevereiro de 1974, o galerista Tony Shafrazi pintaria sobre a tela as palavras “KILL LIES ALL”. A frase, deliberadamente confusa, seria uma alusão ao romance de James Joyce de 1939, Finnegans Wake. Após ser detido por um dos guardas do museu, Shafrazi pediu que fosse chamado o curador do museu afirmando ser um artista.
Note-se que este acto, apesar de igualmente repugnável, possui uma lógica claramente atendível. Um grupo de artistas e intelectuais evidenciaram a clara demagogia em expor uma tela consagrada aos crimes cometidos na guerra civil espanhola, quando estavam a ser cometidos crimes de igual monta pelo governo americano no Vietname. O acto de Shafrazi, não obstante as óbvias motivações autopromocionais, inscreve-se numa linguagem plausível e dentro de uma óbvia cadeia de causa-efeito. Uma obra consagrada à denúncia do horror da guerra constituiu-se enquanto veículo de propaganda de novos horrores e de novas guerras. Enquanto processo de linguagem indirecto afigura-se claramente lógico. Falemos agora do ilógico.
Destruir com a finalidade de viralizar o acto tornou-se, hoje, uma marca indelével das novas tribos que habitam as redes. Porém, nunca existiu um desligamento tão flagrante entre o objecto e a causa por detrás do acto, ou seja, um despropósito absoluto da linguagem. Muito recentemente, após a concretização de mais um acto de iconoclastia, foi formulada a seguinte questão: What is worth more, art or life? A esta imbecil pergunta os historiadores deverão contrapor vigorosamente a definição do sentido da arte de Martin Heidegger: «A arte é histórica, no sentido essencial de que funda a História (…) A arte faz brotar a verdade». Arte e vida são, de facto, inseparáveis. O valor intrínseco de uma dilui-se plenamente no significado da outra. As recentes atitudes iconoclastas, ao contrário dos exemplos atrás referidos, demonstram apenas o grau de incultura que grassa nos «enxames» sociais. A relativização do acto, a banalização da integridade física do objecto, o simples questionamento em torno da destruição de algo «belo», infere o vazio conceptual da acção, mas sobretudo, de uma notória doença da linguagem.
De acordo com Max Müler, todas as doenças da linguagem traduzem-se em doenças do pensamento: «Linguagem e pensamento são inseparáveis e… uma doença da linguagem é, portanto, o mesmo que uma doença do pensamento…». Este processo promove, na óptica de Hans Belting, uma deslocação definitiva entre o significado de um «acto» e a sua imagem: «As imagens são hoje consumidas como informações, que poupam ao público as fadigas da leitura. São informações com a intimação tácita à idolatria».
O acto deliberado de cobrir de tinta a obra Femme dans un fauteuil, pintada em 1929 por Pablo Picasso, não se inscreve de modo algum nos protestos em torno da emergência climática, mas procura somente esse mecanismo básico que Belting aponta – uma intimação tácita à idolatria. A aura de um Picasso, parece conferir, na mente dos iconoclastas da Climáximo, uma notoriedade à causa. Enganam-se profundamente. Manifestam na escolha do objecto e na atitude, essa óbvia fadiga do pensamento e da leitura. Todo acto manifesta uma óbvia ausência de reflexão, uma doença da linguagem…
As T-shirts com a inscrição «Eles declararam guerra contra a vida». O comunicado póstero invocando a célebre blague contada por Picasso de que teria respondido a um soldado alemão que tinha sido «ele» a fazer a Guernica. Tudo falho de sentido. Tudo ilógico.
Não sabemos se a escolha terá recaído em Picasso por motivos ideológicos. É possível. Mas os dirigentes da Climáximo deveriam ler com proveito a obra Las Traiciones de Picasso de José María Beneyto. É que Picasso, apesar de genial artista, foi um ser falho e imperfeito, de resto, à semelhança dos demais, senão vejamos: Guernica resultou de uma encomenda no valor de 150.000 francos franceses por parte da República Espanhola, e não um acto de altruísmo do pintor; Picasso recebeu no seu mítico atelier dos Grands Augustins inúmeros oficiais alemães; foi amigo pessoal de Arno Breker, escultor do regime; vendeu inúmeras obras a declarados nazis aquando da ocupação de Paris; através destes e de outros expedientes pôde contornar o racionamento que grassava por toda a cidade, atravessando o período da ocupação com relativo conforto; foi comunista apenas por conveniência e pressão de amigos, mas a fortuna, essa foi feita construída através das vendas a galeristas americanos, caso de Samuel Kootz; como tantos intelectuais, escritores e artistas, só se apercebeu do horror Estalinista tarde demais; Picasso é conhecido como um misógino inveterado que classificava as mulheres em duas categorias – deusas ou capachos; alguns dos retratos de forte cariz sexual que realizou de Marie-Thérèse Walter foram pintados quando esta tinha apenas 17 anos. O conhecimento destes factos não deverá contribuir, como é evidente, para o seu cancelamento. A sua arte e a sua vida resultam, de facto, num todo inseparável, num retrato de uma época.
Usar Picasso como fachada para uma causa absolutamente alheia à sua obra e ao seu percurso de vida resulta de uma óbvia ausência de reflexão. A emergência está aí e a luta é justa e necessária, mas os métodos escolhidos são tresloucados e imbecis.