A recente polémica acerca das declarações wokistas de Marcelo rebelo de Sousa não encerram nada de novo. Apesar de constituir um dislate, possibilita o debate e o confronto de ideias, e isso é sempre salutar. É certo que Marcelo falou abertamente de compensações, mas a vacuidade do conceito e da métrica a aplicar esvazia a proposta de sentido. Subsequentemente, o discurso tendeu a centrar-se sobre um outro aspecto muito particular – a devolução do património cultural. O conceito de restituição cultural não é novo. Surgiu pela primeira vez na década de setenta, mas a sua implementação tarda por receio de que se abra uma caixa de pandora. Este receio não é infundado. Poderemos conhecer o início do processo, mas nunca o seu fim. No poema Xadrez, Jorge Luis Borges descreve um sistema retroactivo em perpétuo movimento que poderá ilustrar o absurdo da questão: «Deus move o jogador e este move a peça. Que Deus por trás de deus o jogo começa?». De facto, por onde começar em matéria de restituições? Qual o deus responsável pelas primeiras apropriações indevidas? Fará sentido interromper o fluxo que caracteriza a relação intrínseca da humanidade com os objectos artísticos? Será a viagem desses mesmos objectos através do tempo e do espaço um acidente fortuito?

No entender de Vítor Serrão, este aspecto constitui um dos factores que conferem à arte o seu carácter de singularidade, ou seja, o seu transcontexto. Por transcontexto entenda-se a viagem das formas, ideias e objectos no decurso de um determinado lapso de espaço-tempo. Esse lapso, também se constitui num objecto conferente de significado. Assim sendo, todas as formas de arte presentemente expostas em museu europeus provenientes de outros continentes reflectem na sua «aura» todas as vivências conferentes de significado, sejam elas positivas ou negativas – e esse é precisamente o carácter do seu transcontexto.

Os objectos artísticos são assim entes comunicativos e viajantes. Essa é a sua genuína natureza. É através da viagem dos mesmos que a arte constrói laços de sincretismo entre função, forma, ideia, união e pluralidade. A interculturalidade constitui assim a chave para a compreensão da questão. Rudolf Wittkower fala-nos precisamente acerca do carácter plural e peregrino das formas, das ideias e do significado: «Durante quase um século, os etnólogos trabalharam com duas teorias antagónicas: a difusão de técnicas, ideias, conceitos e formas de arte, versus a “geração espontânea” e independente de cultura em diferentes partes do mundo». Um exemplo desta fusão encontra-se ilustrada claramente pela chamada arte Indo-Portuguesa, Sino-Portuguesa, Nipo-portuguesa ou Singalo-portuguesa. Estes objectos ilustram precisamente o resultado dessas trocas dialectais entre o oriente e o ocidente. Será de supor, que também os artistas africanos tenham desenvolvido um sistema de trocas dialectais através da posse, contemplação e experimentação de «outras» formas de arte do continente africano. É um facto que em arte nada nasce de geração espontânea.

Analisemos então a questão africana de um ponto de vista distinto. Não constituirá um atestado de menorização falar em restituição da arte africana? Não será uma traição ao seu brilhantismo e capacidade de inovação das formas, das ideias e de um «fazer» renovado e sempre em transformação? Não será negar o seu capital de inovação e o papel preponderante e influenciador da arte europeia? Certamente que sim. Basta olhar para os magníficos Crucifixos do Congo, datados dos séculos XVI e XVII, para compreender que a convergência de visões estabeleceu-se em duas direcções: de África para a Europa, mas também da Europa para África. As formas e o «fazer» são africanos, a função e o significado são europeus. Cristo surge aqui orgulhosamente africano, em toda a plenitude da sua universalidade simbólica.

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A polémica tende a incidir sobretudo nas inúmeras colecções de máscaras e esculturas africanas presentes um pouco por toda a europa a partir de finais do século XIX. Uma das mais proeminentes colecções será a do Musée d’Ethnographie du Trocadéro, fundado em 1878 e transferido em 1935 para o Pallais de Chaillot. Também aqui importa contextualizar a questão. A sua colecção de máscaras Fang e de esculturas africanas irão influenciar uma revolução artística capaz de obliterar definitivamente séculos de tradição pictórica e escultórica europeia, ou seja, o nascimento do cubismo e subsequentemente do modernismo. Uma visita ao excepcional Musée de l’Orangerie onde se encontra a célebre colecção de Paul Guillaume, notável marchand de arte e um dos primeiros coleccionadores de arte africana em Paris, ilustra claramente esta relação.

Num artigo datado de 1928 e intitulado Prestige of African Art, Paul Guillaume revela a genialidade da arte africana enquanto fonte de todas as transformações artísticas europeias: «Trata-se de uma questão de arte e até de revisão da nossa concepção, tiranicamente moldada pela Grécia do século V. (…) Sem as vendas, a jovem geração abre amplamente os olhos e deixa-se levar, extasiada, livre para a contemplação da sua escolha. O movimento moderno da arte inspira-se sem dúvida na arte africana, e não podia ser de outra forma. (…) A obra dos jovens pintores como Picasso, Modigliani, Soutine, por exemplo, é, em certa medida, a obra da emoção africana num novo cenário».

Tratar a arte africana unicamente enquanto inventário e esbulho é reduzir a sua dimensão artística universal. A genialidade dos seus criadores merece uma centralidade inequívoca em todos os museus do mundo. Só assim poderá afirmar plenamente o seu brilhantismo, cujo contributo, foi crucial para a transformação definitiva da história da arte ocidental.