1. Nos últimos tempos tem-se feito do debate sobre a eutanásia um diálogo de sádicos. Diante de alguém que sofre, que não vê sentido ou utilidade em viver, seria no mínimo sádico – defende-se – não permitir a ajuda para a sua desejada morte.

2. Várias notícias ecoaram recentemente o caso de um cientista australiano, com 104 anos, que cometeu suicídio assistido na Suíça. David Goodall era há muitos anos um ativista da consagração do direito fundamental a uma “morte planeada”, sendo membro de uma organização nesta área (“Exit International”).

3. Em declarações à CNN, Goodall afirmara que teria preferido morrer quando lhe retiraram a carta de condução, em 1998. Viveu mais 20 anos para em 2004 receber um doutoramento honoris causa e em 2016 ser condecorado pelo Governo australiano.

4. David Goodall não estava doente, nem em sofrimento terminal. Estava simplesmente velho, debilitado, condicionado nalgumas das suas faculdades. Apesar de tudo, muito bem para a admirável idade de 104 anos. Disse que “obrigar alguém a permanecer vivo, mesmo quando já não há nada para viver” é “cruel”. Cá está, é para sádicos.

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5. O caso não mereceu a indignação dos defensores da Lei da eutanásia em Portugal. Ninguém se parece ter insurgido contra a veleidade ou desumanidade do exemplo de David Goodall. Pelo contrário, David Goodall foi noticiado como arauto de uma pretensão serena, adulta e livre.

6. O exemplo de David Goodall diz-nos que se luta hoje, quando sem artifícios ou reservas mentais, para que seja consagrado um novo direito: o direito a ser morto a pedido. A consagração de um tal direito representa uma descontinuidade com tudo aquilo que até aqui afirmámos na nossa ordem social e jurídica.
Uma tal consagração tem de ser bem equacionada e totalmente convincente. E não estou apenas a invocar o argumento de autoridade e da difícil conciliação com a Constituição da República Portuguesa. Sim, que determina que a vida humana é inviolável.

7. Se podemos consentir na violação da vida, há algum mal que não possamos consentir? Por exemplo, porque não podemos consentir na mutilação genital feminina, a pedido?
E com a legalização da morte a pedido, não estamos a introduzir na prática a pena de morte para os prisioneiros que a peçam? E porque não para um rapaz de 16 anos, idade suficiente para a autodeterminação sexual?
As hipóteses podem multiplicar-se, como têm vindo a multiplicar-se na prática doutros países. Uma vez autorizada para uns, porque não para os outros? Quem sou eu para o negar? É o que tem sucedido num fenómeno que foi batizado como a rampa deslizante. Os números falam por si. Na Holanda, por exemplo, já se cometem mais de 20 eutanásias por dia.

8. O Conselho Nacional para a Ética das Ciências da Vida emitiu um parecer sobre o projeto do PAN sobre a morte assistida. Em cerca de 20 conselheiros, apenas um se mostrou favorável à proposta. São membros indicados por diferentes Partidos, por organizações da sociedade civil, académicos,  e representantes de ordens profissionais (Advogados, Médicos, etc). Ou seja, a sua composição é plural e insuspeita.
O CNECV foi a única entidade que seriamente promoveu um debate alagado sobre a matéria, com várias sessões e convidados para todos os gostos. No final, 95% dos votos foram contra o diploma.

9. A introdução duma tal consagração exige, no mínimo, muita prudência que não está minimamente assegurada. Não sou eu que o digo. A organização favorável à eutanásia, plataforma designada Wish to Die, veio pedir ponderação e estudo de melhores soluções. “Neste momento, o grande objetivo da plataforma é influenciar a discussão no sentido de todos podermos ganhar tempo para encontrar melhores soluções” disse Miguel Ricou coordenador daquela plataforma.

10. Diante de tudo isto, como não ter pelo menos dúvidas sobre a matéria e sobre o timing da sua implementação? E diante de dúvidas como não pedir mais tempo, esclarecimento e debate aprofundado?
Quando estamos entre a vida e a dúvida, importa escolher a opção que não fecha, mas abre o diálogo a um maior aprofundamento no futuro. A recusa destas propostas legislativas não será necessariamente cabal, mas uma vez consagrado um direito irreversível, todos concordaremos que mais dificilmente se voltará atrás.