Até meados do ano passado não havia acordo entre os Estados-membros da UE sobre o Quadro Financeiro Multianual para 2021-27 (QFM), proposto por Jean-Claude Juncker dois anos antes, nem sobre o Mecanismo de Recuperação e Resiliência 2021-26 (MRR), que Ursula Van der Leyen propusera em maio, e, consequentemente, no que respeitava à nossa rede ferroviária, estava ainda em vigor o plano sensato, concebido por um excepcional presidente da CP, de continuar a modernizar as linhas ativas e respetivo material circulante, designadamente a linha Lisboa-Porto, reativar algumas das que tinham sido negligenciadas ou mesmo abandonadas e respetivo material circulante remanescente, e, eventualmente, construir novas, sobretudo para transporte de carga.

Porém, logo que houve acordo sobre o QFM e o MRR tudo mudou e o projeto megalómano de construção duma dispendiosa linha de alta velocidade ressuscitou inesperadamente e com o mesmo argumento original, de 1999, o de que seria essencial encurtar o tempo de deslocação entre Lisboa e Porto, de três para pouco mais de uma hora, a fim de a CP poder competir com a TAP – como se o que é importante para as pessoas que preferem viajar de comboio não fosse ter condições para trabalhar nos seus dispositivos digitais durante a viagem, seja qual for a duração.

Por ser mais consentâneo com os objetivos das proclamadas transições climática e energética, o argumento da necessidade de descarbonizar a economia tem vindo a impor-se ao da alegada necessidade de encurtar o tempo da deslocação e, consequentemente, a putativa necessidade de ligar Portugal à rede europeia de alta velocidade prevalece cada vez mais na cobertura mediática deste assunto.

Pergunto-me, no entanto, em face do vazio de estudos comparativos aprofundados das diversas opções, se não estamos a comprar uma linha ferroviária astronomicamente cara só porque nos sentimos mais ricos desde o verão passado e, portanto, só porque a linha de alta velocidade ficou mais acessível, diria mesmo em saldo.

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Parece, com efeito, ter pesado pouco o contributo que a reabilitação das linhas desativadas e respetivo material circulante – como, por exemplo, os 100 quilómetros entre Pocinho e Fonte de Santo Estevão que estão desativados há 35 anos na Linha do Douro, uma verdadeira maravilha de engenharia desenhada, financiada, construída e operada pela iniciativa privada portuense em toda a sua extensão – daria para o desenvolvimento do turismo independente na nossa raia fronteiriça, onde dezenas de vilas medievais de grande beleza e significado, localizadas em paisagens deslumbrantes, estão ao deus-dará.

Mas o mais surpreendente é a falta de estudos comparados entre um investimento numa infraestrutura que a prazo se limitaria a aproximar-nos mais do único país vizinho terrestre, e através dele do resto do continente europeu, e um investimento numa infraestrutura que nos permitiria expandir as relações diretas com os outros países de língua portuguesa, designadamente com o Brasil, e com os continentes americano e africano em geral, fixando, de uma vez por todas, Lisboa como ponto de transbordo mais atraente para os que viajam nos dois sentidos entre aqueles países, a Europa e a Ásia, ou seja, a construção faseada de um novo aeroporto central nos 7,5 mil hectares que o Estado possui em Alcochete e da respetiva travessia fluvial ferroviária entre o Barreiro e Chelas.

É com efeito incompreensível a multiplicação de reportagens e comentários contra a construção de um aeroporto central para os próximos 50 anos, e a favor de remendos para que um pano velho dure mais uma década, sem que o LNEC tenha sido convidado a retomar o excelente trabalho que fez há 15 anos atrás para, aproveitando a dolorosa pausa que a pandemia gerou na vida económica, completá-lo com uma ponderação cuidada dos benefícios comparativos expectáveis entre um investimento que acentuará o confinamento geográfico das nossas relações e um investimento que alargará o nosso raio de alcance direto.

São, afinal, as duas correntes que se opõem há mais de 500 anos que voltam a estar em confronto, a que sempre preconizou uma ligação mais estreita com o nosso continente e a que sempre defendeu uma ligação mais forte com os outros continentes, ou pelo menos uma relação equilibrada com um e outros, tendo sido da segunda que historicamente nasceu a atual Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Há 10 anos atrás, demos passos importantes nessa direção quando, à brilhante decisão de entregar em 2000 a gestão da empresa pública TAP ao antigo CEO da VARIG, se acrescentou a igualmente brilhante decisão, que parecia definitiva, de construir o Novo Aeroporto de Lisboa (NAL) no Campo de Tiro de Alcochete – é certo que não sem primeiro decidir construir uma rede de alta velocidade, porventura para aplacar primeiro a corrente oposta…

Em consequência do impacto da crise financeira internacional foi, no entanto, preciso adiar sine die, em 2011, a decisão de construir uma rede de alta velocidade, mas, mesmo assim, a privatização da ANA, igualmente imposta pelos credores, não parecia ter posto em causa os planos para a construção do NAL, à qual ficou vinculada a concessão, em 2012, de oito aeroportos nacionais à empresa francesa VINCI, por 50 anos, dos quais logo os primeiros cinco, entre 2013 e 2017, geraram resultados líquidos acumulados de 1,2 mil milhões de euros o que, mesmo descontando a pausa do negócio em 2020-21, permitiria esperar a geração de pelo menos mais 10 mil milhões até ao fim da concessão. Mais do que suficiente, às taxas de desconto atuais, para financiar a construção faseada do novo aeroporto central em Alcochete até 2030, cabendo ao Estado apenas a despesa com as acessibilidades.

Do mesmo modo, em perfeita consonância com o estratega Fernando Pinto, que em 2018 deixou a TAP com 70 voos semanais para o Brasil e 70 para África, o novo acionista de referência entre 2015 e 2019, David Neeleman, um profundo conhecedor dos mercados da aviação no Brasil e nos EUA, onde era operador e cujas nacionalidades acumulava, manteve e aprofundou o perfil da companhia e, logo que substituiu a frota, limpou o passivo com aval do Estado e aumentou o contingente de trabalhadores, começou a estendê-lo aos EUA com muito sucesso.

Isto, não obstante ter sido alvo desde o início de uma campanha negativa extremamente injusta, que não abrandou com o regresso do Estado ao conselho de administração em 2016, e apesar de o conceito de novo aeroporto central, no qual a TAP tem naturalmente um interesse objetivo estrutural, ter sido gradualmente substituído pelo conceito de aeroporto complementar da Portela, ao ponto de a referência ao NAL como objetivo principal da concessão dos aeroportos em 2012, acabar por ser eliminada numa revisão do contrato em 2018.

Eis, pois, que volvidos 10 anos sobre aquelas decisões, nos encontramos a caminhar na direção oposta: depois de, em 2018, deixarmos cair o conceito de novo aeroporto central a pretexto da urgência de expandir a capacidade aeroportuária em Lisboa, e depois de, em 2020, nos pormos a jeito para que a Comissão Europeia nos obrigasse a reestruturar a TAP, em contrapartida do consentimento à ajuda de Estado que a pandemia tornou necessária, o plano de construção de uma linha ferroviária de alta velocidade é propagado urbi et orbi em 2021 para cumprirmos finalmente o desígnio de ligar Portugal à rede europeia de alta velocidade.

Claro que a opção de alta velocidade que está agora em cima da mesa privilegia o chamado eixo atlântico, o que tem servido para apresentá-la também como uma medida de valorização dos portos atlânticos portugueses e galegos, o que todavia não rima com o corte operado na versão final do Plano Nacional de Investimentos 2030 no já de si baixo nível de investimento público inicialmente previsto para os portos portugueses.

Uma coisa deveria  no entanto  ser consensual: havendo que fazer uma escolha entre os dois, o investimento num novo aeroporto central em Alcochete teria que ser prioritário à luz da consolidação da autonomia estratégica portuguesa, ainda que fosse o Estado a financiá-lo integralmente, e só na eventualidade de os recursos a fundo perdido disponíveis nesta década, mais de 60 mil milhões de euros entre o que ainda não gastámos e o que ainda vamos receber até 2027, nos permitirem conjugar os dois investimentos é que poderíamos contemplar a construção de uma linha de alta velocidade entre Lisboa e Valença.

Ainda assim, nunca sem se analisar previamente se um investimento de 5,4 mil milhões de euros não teria muito mais impacto no desenvolvimento integral do país se fosse feito na reabilitação das linhas ferroviárias e respetivo material circulante, que foram incompreensivelmente negligenciadas ou abandonadas no interior do país, e na reabilitação urbana das dezenas de vilas históricas por elas servidas, dando um impulso decisivo no crescimento e na graduação do turismo, indústria, cujas exportações nominais duplicaram entre 2010 e 2017, até atingirem um quinto das exportações totais e cuja receita média por turista, nesse ano, já era o dobro em relação à Grécia, 45% maior do que em Itália e 37,5% maior do que em Espanha.

E se dessa análise prévia resultasse que o investimento na linha de alta velocidade Lisboa-Valença, cujo impacto no agravamento da disparidade entre os aglomerados urbanos do litoral e os do resto do país será sempre inevitável, seria  além disso  menos produtivo que a aplicação do mesmo montante na reabilitação das linhas ferroviárias negligenciadas ou desativadas, das respetivas obras de arte e estações e do respetivo material circulante, e na reabilitação urbana e patrimonial das vilas por elas servidas, então não deveríamos hesitar em adiar aquele para a próxima década.