Desta feita irei tentar, qual comentador José Miguel Júdice no seu habitual espaço As Causas, na Sic Notícias, relacionar assuntos que parecem ter pouco ou nada a ver uns com os outros, neste caso dois: a nova medida do Governo de aumentar, a partir de 2024, o Imposto Único de Circulação (IUC) dos carros anteriores a 2007 e o coaching.

Então, qual foi o eixo de análise que identifiquei e que une as duas temáticas? Bem, a ideia de que tanto um como outro são salvadores de determinada coisa. No caso do Governo, a pretensa intenção de socorrer ao ambiente; nos coaches a alegada vontade de ajudar a humanidade a sair de um estágio de subdesenvolvimento e de letargia.

O aumento do IUC não vinga o epíteto do partido que se encontra a governar os destinos do país neste momento. Isto porque penaliza as classes mais pobres ao parecer assumir aquilo que, para o caso da maioria das pessoas, é uma falsa proposição: de que estas não trocam de carro apenas por falta de vontade ou por preguiça. Quem tem automóveis anteriores a 2007 – olhe, caro leitor, como o meu pai, que, sendo eu um jovem de 23 anos, possui um automóvel mais velho do que eu, de 1997. O meu agregado familiar, composto pelo meu pai, que é o único a auferir rendimento de forma estável, a minha mãe desempregada e doente oncológica e eu, que presto serviços para duas entidades a recibos verdes e sem um salário fixo ou sequer mínimo, pode ser considerado de classe baixa ou média-baixa. Por isso, temos de conseguir gerir as quantias monetárias de que dispomos durante um mês com um grau significativo de parcimónia, não podendo realizar ações de alta despesa – como substituir o carro – com a frequência desejada.

Como nós deverão existir muitos agregados familiares, com rendimentos baixos num país em que a vida tem ficado cada vez mais cara e, portanto, sem quaisquer possibilidades de, por magia, adquirir um carro topo de gama saído no mês passado. No entanto, o Governo considera que não o fazemos por má vontade e, por isso, em nome de uma causa justa e digna, porém, amiúde perspetivada de forma extremista (como é o caso), torna-se a vida de uma pessoa pobre mais difícil. Já aqueles indivíduos que, eventualmente, compraram um veículo em 2010, depois em 2017 e agora até em 2023, por exemplo, ingressando na obsolescência programada, ou aquelas famílias compostas por vários membros em que cada um tem a sua própria viatura, são os que verdadeiramente apoiam o ambiente e nos mostram como se devem fazer as coisas.

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A mesma espécie de revolta que esta medida me causou quando foi anunciada identifico-a sempre que penso na atividade exercida pelos coaches. Estes alegados profissionais do bem-estar mais redutor, do mindfulness e dos kits de soluções para tudo e todos mostram como nos esquecemos das variáveis cruciais que afetam o comportamento humano. O género, a idade, as condições socioeconómicas deram lugar ao individualismo e à ideia de que basta pensar positivamente para conseguirmos resolver qualquer problema. Curiosamente essas supostas chaves para a felicidade apenas parecem funcionar com pessoas em já boas condições de vida, pois não se deteta ponta desse discurso, por exemplo, para com as pessoas sem-abrigo, a quem é reservado um discurso de caridade e de crítica à falta de apoio das políticas do Estado. O coach pode ter um desígnio interessante de pretender que a pessoa consiga pensar melhor de si e suplante obstáculos na sua vida, mas esquece-se completamente de que as pessoas não podem ser tudo o que querem apenas através da sua vontade; de que quem propõe esse tipo de soluções parte, geralmente, de um lugar de fala e de um estatuto social favorável; ou de que, ao estimular este pensamento-em-si-mesmo excessivo, ignora-se muitas vezes o poder da comunidade e das medidas políticas e científicas na resolução dos problemas.

A medida do aumento do IUC e o coach são, aliás, duas realidades pouco científicas, na medida em que se aproveitam desta de forma discricionária e para o que lhes dá jeito. É verdade que os cientistas têm insistido na importância de protegermos o meio ambiente contra as alterações climáticas e de que devemos apostar numa melhor saúde mental, porém, não afirmam que tal deve ser à custa da exclusão dos mais pobres ou da comercialização de serviços a um preço elevado sem comprovação da sua qualidade. A sociologia, aliás, a área de onde eu venho, é clara nos dois temas: uma medida ambiental não tem sucesso somente à custa das classes mais desfavoráveis nem pode resultar se não se devolver algo para compensar o que se tira; e o desenvolvimento pessoal apenas é efetivo quando se permitem as condições para o desenvolvimento social. Muitas vezes, as pessoas pobres têm doenças do foro mental, não porque não pensem em si mesmas e não tenham vontade de mudança, mas sim devido a medidas mal desenhadas e aplicadas e ao egocentrismo que nos impede de agir em favor dos mais precários e discriminados.

Se não conseguirmos pensar de forma coletiva não seremos capazes de responder aos verdadeiros desafios da nossa era. Para isso, ações excludentes do poder central, por um lado, e promotoras do capitalismo mais feroz e individualista de pseudocientistas, por outro, não servem, sendo antes contraproducentes na missão de tornar o mundo um lugar melhor para todos.