Foi notícia na véspera do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Mas, entre Santos Populares e escapadinhas de férias, caricaturas e dicas de jardinagem sobre ramos mortos, corre o risco de ter passado despercebido: Portugal revalidou e aumentou a liderança enquanto maior consumidor mundial de vinho.

Branco, tinto, rosé – o que quiserem. Não é para todos. Nos dias que correm, não somos propriamente líderes mundiais em muita coisa. Aliás, geralmente, quando aparecemos no top 5 ou top 10 de um índice qualquer, não é a propósito das performances mais notáveis: é países mais envelhecidos, mais endividados, menor PIB per capita, mais descrentes nas instituições e no futuro, etc. Agora, líderes mundiais no vinho? Caramba. Que categoria.

Dizia a notícia do Público, de acordo com o relatório da Organização Internacional da Vinha e do Vinho, que cada português consumiu, em média, 67,5 litros de vinho no ano passado. Mais 20,1 litros – oiçam isto – mais 20,1 litros do que cada francês, os segundos classificados (e aqui, eu sei que até aqueles que estavam a censurar em silêncio o cronista por não sublinhar a gravidade da questão do alcoolismo, sentiram um certo orgulho. Ah, e tal, os franceses, tanta conversa sobre o vinho e as castas e os taninos e o terroir, e o Château isto, Château aquilo, e vai-se a ver e pimba: tomem lá 20 litros de avanço que ainda ganhamos por 0,1. É o Euro 2016 outra vez. De penalty, se for preciso).

A grandeza dos números não se fica por aqui. É um aumento de 14,3% em relação ao ano anterior e, ainda por cima, em contraciclo. Em 2022, o mundo consumiu menos vinho, menos três milhões de hectolitros, para ser mais preciso. As razões apontadas prendem-se com as restrições à Covid que ainda vigoraram boa parte do ano, por exemplo, na China, ou com as sanções e embargos resultantes da guerra na Ucrânia. O que é que nós, portugueses, fizemos? Bebemos ainda mais, está claro. E não foi mais um copo, foram mais 500 mil hectolitros. Estão a brincar com isto? Pandemias, guerras, ameaças nucleares, e uma pessoa ainda devia dar em abstémia, queres ver?

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O caso presta-se à graça fácil, mas diria que fala de uma coisa muito séria: esta nossa antiquíssima sabedoria. Ela será descrente depois de tantos séculos de desilusões, será melancólica e, quantas vezes, solitária, nada fará por mudar o mundo, mas é efectivamente sábia e feliz. Ninguém me tira da cabeça que o povo de brandos costumes desmentido pelo comportamento no trânsito, nas caixas de comentários dessa internet e tantas e tão trágicas vezes pelo seu comportamento conjugal, só é brando e adormecido porque, apesar de tudo, come e bebe bem e vive à beira-mar e há sol quase todo o ano. Os prazeres que outros cada vez procuram e pagam para ter, o português tem-nos de graça ou razoavelmente baratos, ainda.

Os números confirmam-no: a maior subida no consumo ocorreu na restauração, mais do que no retalho. Os turistas estão a vir a Portugal ajudar-nos a ser ainda mais campeões do mundo. Vêm beber a Portugal – e pagam bem por isso. Agora, dessem-nos a nós o clima e o peixe frito dos ingleses e já nos tínhamos virado ao contrário; os governos não durariam mais de um ano; as ameaças atiradas pelo vidro do carro, em acelerado andamento para longe da situação, passariam a vias de facto.

Mas como o mais elegante dos franceses, aprendemos a beber e a gozar as coisas boas da vida – e demos-lhes 20 litros de avanço. Aos espanhóis, 27. Cada um. E querem-nos a falar da poda do Galamba e do falo de Cutileiro que, afinal, a Câmara de Lisboa, vai deixar orgulhosamente erecto à liberdade durante a visita do Papa, e dos cartazes que o primeiro-ministro acha racistas, e que o cartoonista se faz de sonso e diz que são fofinhos, e que alguma esquerda veio a correr ligar aos “movimentos inorgânicos” e à “extrema-direita” e vai-se a ver e, afinal, até foi feito por um senhor da CGTP? Deixem-nos com o nosso vinho, que, no fim de contas, também é a nossa maneira de ser poetas e estar sozinhos, como Fernando Pessoa, que também não bebia pouco e fez anos anteontem.