Agora que já li os vossos textos sobre eles e desisti de pagar 500 libras à Ticketmaster por um bilhete para os ver a um quilómetro, algures entre os encantos de Edimburgo, deixem-me que vos fale também eu do que têm, afinal, os Oasis assim de tão extraordinário: a sua espantosa, por vezes comovente, vulgaridade.
Comecemos pelo nome: Oasis? Recuemos momentaneamente aos tempos borbulhentos da adolescência: algum de vós ficaria contente com esta sugestão no brainstorm para o nome da vossa banda de garagem? Este nome de loja de pronto-a-vestir de beira de estrada? Modelo de Renault Clio dos antigos? No deles, alguém achou excelente. Raramente dois tipos tão medianos chegaram tão longe – e chegaram longe não por sorte, não por acaso nem por estarem “no sítio certo, à hora certa”, não por terem padrinhos nem qualquer intervenção mais ou menos divina, mas, única e exclusivamente, porque o quiseram. Quiseram muito.
Calma. Não estamos n’ “O Segredo” – a história tem muito mais fuligem do que nesse tipo de literatura. O universo não se desviou da frente dos manos Gallagher a partir do momento em que decidiram aonde queriam chegar – aliás, foi quase sempre preciso fazê-lo sair da frente ao encontrão. Noel e Liam são dois tipos que nasceram na Manchester industrial de fim dos anos 60, início dos 70, filhos de um pai alcoólico que a mãe, finalmente, conseguiu pôr a andar já os miúdos iam para adolescentes, mas que, até lá, lhes bateu sempre que lhe apeteceu, provocando a gaguez ainda detectável ao mais velho dos dois já ele era homem feito e estrela em ascensão no firmamento pop.
Andaram às turras desde pequenos, como outros dois putos quaisquer que dividissem um quarto (o outro ficava em regime de exclusividade para o primogénito Paul), foram expulsos da escola, trabalhar para as obras e, de vez em quando, fazer umas visitas à esquadra por pequenos assaltos ao comércio local. Não tinham nenhum dom extraordinário nem se cruzaram com um mestre que os salvasse da perdição; a história só principiou a mudar – e muito devagarinho – quando, num desses retiros espirituais forçados pela polícia, Noel começou a aprender a tocar guitarra sozinho da mesma forma que todos os que aprenderam a tocar guitarra sozinhos: não especialmente boa, mas muito eficaz.
Crescemos a querer ser como os grandes atletas ou os grandes artistas, raramente nos apercebendo da verdadeira excepcionalidade de cada um deles. Como o tipo que está a correr, a nadar ou a tocar ao lado é quase tão excepcional, falta-nos o termo de comparação que nos desse a escala realista da dimensão dos seus dons. Os Oasis, que se autoproclamavam a melhor banda do mundo, os novos Beatles, enquanto corriam ao lado do génio criativo dos Blur, da ironia intelectual dos Pulp ou da intuição melódica dos Suede, para já nem para aqui chamar as qualidades alienígenas dos Radiohead, fizeram a vida fácil aos detractores: bastava olhar com olhos de ver, ouvir com ouvidos de escutar. Mas o que esses críticos desafortunados nunca compreenderam é que aí residia toda a sua grandeza: dois putos mais ou menos banais que, por muito quererem, às vezes foram mesmo da altura de gigantes. Em “Live Forever”, “Slide Away”, “Wonderwall”, “Don’t Look Back in Anger”, “Champagne Supernova”, “The Masterplan”. Que nos fizeram cantar e dançar de olhos fechados e braços abertos, capazes de arrebatar o mundo, como se também nós fôssemos momentaneamente grandes.
Bem sei que o que mais há aí, por definição, é gente banal. Também sei que o que não falta é gente banal convencida da sua excepcionalidade e a tentar dar o salto para esse lado do Olimpo e a estatelar-se ao comprido na tentativa. O que os Oasis conseguiram durante a era da britpop, como outros, poucos, durante o grunge ou o punk, foi a vitória dos homens e mulheres normais, dos que não eram particularmente dotados, nem versados, nem afortunados – talvez nem sequer especialmente bons tipos. Mas até isso os tirava dos contos de fadas e aproximava da vida real: dois irmãos embirrentos, nada fraternais. O nariz no ar, os amuos, o vernáculo de taberna – quantas vezes o que de mais evidentemente genial exibiram não foi mesmo o mau génio? Mas e então? As bandas dos sobredotados e dos bons meninos, um dia, zangavam-se e ia cada um para o seu lado; na deles, um dia também se zangaram e foi cada um para o seu lado, como se percebia desde o início que iria acontecer, sem enganar ninguém. A viragem na história, para os outros, era acabar mal; quem sabe para os Oasis, um dia, não é acabar bem.
É por isso que agora nos disputamos por um bilhete para assistir ao regresso destes rufias que já torciam pelo City ainda os citizens não ganhavam nada e o mundo todo era do United. Mesmo que venha a ser efémero. Mesmo que os tenhamos visto no tempo deles e não tenha passado de um concerto banal, daqueles de mau som no então Pavilhão Atlântico. Porque não há muita coisa mais bonita nem humana do que ver que, de vez em quando, os homens e mulheres normais são capazes de um golpe de asa e tocar os deuses. Sem tragédia a declarar.