Há dias, para mostrar que José Pacheco Pereira teria alegadamente errado ao utilizar o adjectivo “racializado” referindo-se a si próprio, Fernanda Câncio foi buscar o exemplo de uma criança santomense que lhe terá confessado que “antes de chegar a Portugal não sabia que era preta”. Foi já no nosso país, e no momento em que lhe chamaram isso, que a criança adquiriu, sem o desejar, uma “identidade racializada”. É o que acontece, explica-nos Fernanda Câncio, a todas as pessoas que, “em conversas banais num país de maioria branca (…) são designadas pelas suas características étnico-raciais. Características que constituem, muito vulgarmente, um estigma e também um insulto”.

Ou seja, na ânsia de demonstrar que os portugueses (ou os ocidentais) seriam racistas, a jornalista limita a possibilidade de racialização aos contextos de maioria branca, e considera, por isso, absurdo que Pacheco Pereira se defina, para efeitos argumentativos, como “racializado caucasiano branco”, já que a ele, diz-nos, nunca alguém chamou branco “como um insulto, ou o designou como tal numa conversa, para que todos soubessem de quem se trata. (Pacheco Pereira) nunca sentiu que o seu fenótipo o definisse porque, sendo parte da norma, é como se esse fenótipo não existisse”.

Talvez por ter partido de uma ideia pré-concebida sobre o suposto racismo dos portugueses, Fernanda Câncio não terá notado que a palavra-chave aqui é norma, e não raça ou cor. Eu não pretendo negar que, em certas circunstâncias, o termo “preto” possa ser usado como insulto. É-o, efectivamente, mas não sempre, longe disso. Considerar que as pessoas negras são, por definição, racializadas e, ipso facto, objecto de racismo, é um erro que cria um círculo vicioso no raciocínio e que nos ilude. A ideia de racialização das pessoas negras dá constantemente falsos positivos e torna-se, em certo sentido, numa espécie de self fulfilling prophecy.

Qualquer reparo, crítica, censura, dirigidas a essas pessoas, transforma-se na prova viva e irrefutável de que elas estão a ser alvo de racismo, o que é manifestamente excessivo e perverso. Na verdade, se se alude a alguém como “preto” é, muitas vezes, porque essa pessoa se distingue da norma. Ou, então, por brincadeira, como o chamado caso “Conguito”, entre os futebolistas Bernardo Silva e Benjamin Mendy tornou óbvio para toda a gente menos para a Federação Inglesa de Futebol e para as almas susceptíveis e quadradas que se insurgiram perante uma piada entre dois amigos.

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Não há que extrair de coisas destas grandes teorias e conclusões sobre racializações e racismos. Quando a minha filha mais nova estava perto de fazer três anos tinha, na escola, dois colegas de nome Ricardo, que ela referia, para percebermos quem era quem, chamando a um deles “Ricardo da cara escura”. Não havia nada de insultuoso, pejorativo ou racista nisso, como é óbvio. Se Pacheco Pereira tivesse feito a escola num universo de crianças negras seria muito provavelmente chamado “branco”, sem que isso implicasse necessariamente um tom pejorativo ou insultuoso, ou que tivesse de ser sentido como tal.

Estarei a conjecturar? Não. O Futebol Clube do Porto teve, no final da década de 80, um defesa esquerdo brasileiro que ninguém conhece pelo seu verdadeiro nome — Cláudio Ibraim Vaz Leal — mas sim por Branco. Porquê Branco? Porque, em jovem, começou a sua carreira de futebolista numa equipa de negros onde, por contraste, todos lhe chamavam “branco” e o nome ficou.

Ou seja, o futebolista Branco foi racializado. Isto mostra que o termo se aplica não apenas a negros, mas, potencialmente, a toda a gente — dependerá do contexto — e é, por isso, perfeitamente dispensável ou, até, contraproducente. O facto de Branco ter sido racializado mostra, também, que Fernanda Câncio quis concluir depressa de mais quanto ao suposto erro de Pacheco Pereira e que se equivocou. Não é, aliás, a primeira vez que a jornalista se equivoca a este respeito, nem que carrega nas cores mais escuras quando se trata de falar de racismo em Portugal.

Numa intervenção na TSF, Fernanda Câncio disse que o racismo é uma “opinião” segundo a qual existiriam “raças humanas”, e, mais do que isso, uma hierarquia racial com “raças superiores e inferiores”, raças essas que, segundo os racistas, definiriam as características dos indivíduos que a elas pertencessem. Tem razão. O racismo é isso mesmo e a jornalista fez muito bem em definir o conceito porque racismo é uma palavra constantemente usada sem qualquer ponta de rigor. Mas, querendo atribuir ao racismo muitos dos malefícios e horrores do mundo, e aos portugueses uma parte importante nesses horrores, Fernanda Câncio misturou alhos com bugalhos e verdades com equívocos, afirmando que foi o racismo que “em Portugal determinou a legalização da escravatura dos negros até ao século XIX e do trabalho forçado dos negros até 1962; a perseguição aos ciganos ao longo da história da Europa; os holocaustos judeu e cigano perpetrados pelos nazis; e muitas outras atrocidades do passado, presente e, pelo que se vai vendo, do futuro”.

Ora, se está certa quanto ao holocausto nazi, engana-se em boa medida quanto à escravatura, e é importante desfazer esse engano porque ele é muito comum e sugere às pessoas a ideia de que o racismo seria uma coisa intrínseca ao modo português de se relacionar com o mundo, algo de estrutural que teria acompanhado a expansão marítima desde o seu início e que teria motivado e legitimado alguns comportamentos cruéis, nomeadamente a escravatura.

Ora, racismo e escravatura são coisas diferentes e não necessariamente ligadas. Aliás, bastaria ter pensado em todas as formas de escravatura anteriores ao início da expansão marítima portuguesa no século XV. Há, em muita gente da nossa extrema-esquerda, o vício de pensar a escravatura como algo criado ou “inventado” e “desenvolvido” pelos portugueses e outros povos europeus colonizadores das Américas. Por muito que se diga e mostre que não foi assim, estas pessoas continuam a reproduzir o mesmo mantra equivocado. Contudo, não é por muito se repetir que o mantra se torna verdadeiro. Antes de os povos ocidentais terem começado a transportar escravos africanos através do Atlântico e criado sociedades escravistas nas Américas, os potentados muçulmanos já haviam extraído só da África subsariana 5,7 milhões de escravos negros. A esses números poderíamos acrescentar os muitos milhões que receberam da Ásia e da Europa, nomeadamente os eslavos (de onde deriva a palavra “escravo”).

Nessas épocas mais antigas não havia racismo, na acepção que Fernanda Câncio muito adequadamente deu à palavra. E também não o havia em Portugal. Dito de outra forma, não havia a ideia de que os negros pertencessem a uma qualquer raça irremediavelmente inferior e que todos eles partilhassem as supostas características dessa suposta raça. Não era o racismo (que ainda não existia) que determinava a legitimação e legalização do tráfico transatlântico de escravos e a sua escravidão nas Américas. Era, para além da necessidade de mão-de-obra, a ideia de salvação das almas e a convicção de que a vida dos negros seria melhor se aprendessem os fundamentos da civilidade cristã. O mal compreendido e injustamente atacado António Vieira, por exemplo, atribuía o tráfico e a escravidão dos negros não a uma qualquer inferioridade sua, mas à Vontade de Deus.

O racismo “pseudo-científico”, segundo a qual a raça é uma das principais determinantes das atitudes, capacidades e tendências inatas dos seres humanos, é uma ideia relativamente tardia. Os abolicionistas de finais do século XVIII e primeira metade do XIX (Wilberforce, Clarkson, Schoelcher, Sá da Bandeira, etc.) e muitos dos brancos que então se pronunciavam não eram racistas. Acreditavam, e bem, que os negros eram pessoas iguais a eles e que, suprimido o tráfico de escravos, que asfixiava o desenvolvimento africano, chegariam facilmente a um mesmo nível.

O racismo como Fernanda Câncio o definiu foi um trágico desenvolvimento da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX. Isso não significa que não exista relação entre racismo e escravatura, mas a relação que existe funciona ao contrário do que a jornalista e muitas outras pessoas imaginam. Foi o quotidiano da escravidão nas Américas, a vida degradada de milhões de desgraçadas pessoas arrancadas às suas culturas, obrigadas a viver em condições de extrema submissão, que alimentou continuadamente os estereótipos negativos que viriam a escorar a ideologia racista. Não foi o racismo que causou e legitimou a escravatura, foram a escravatura e as condições de sujeição e de infantilização de muitos negros mantidos em cativeiro, que foram, a pouco e pouco, contribuindo para alicerçar ideias racistas.

Não quero com isto dizer que anteriormente não existissem racistas avant la lettre. Existiam, e Edward Long, o autor setecentista de History of Jamaica, que considerava que os africanos nem sequer pertenciam à mesma espécie dos europeus, é um bom exemplo disso. Mas pessoas como Long eram relativamente raras e as suas opiniões ainda periféricas. O facto de eu afirmar que foi a escravidão que alimentou o racismo do século XIX em diante também não implica que antes não existissem preconceitos e estereótipos negativos ou impressões muito desfavoráveis a respeito dos negros, mas, quando existiam, não aparecem estruturados como o racismo que Fernanda Câncio acertadamente caracterizou. Ou seja, estritamente falando não são racismo.

Acresce que não são específicos de Portugal nem do Ocidente, isto é, são o tipo de generalizações pejorativas que encontramos em várias culturas. Era comum os escritores árabes e persas, por exemplo, fazerem juízos muito negativos e, até, humilhantes a respeito dos escravos negros. Ibn Khaldun o grande historiador do século XIV, nascido na actual Tunísia, disse que esses escravos eram frívolos, excitáveis, emotivos e geralmente aceitantes da escravidão porque tinham características semelhantes às dos animais irracionais. Suponho que não seja frequente apresentar Ibn Kaldhun como racista. Imaginem, porém, que as frases que escreveu a respeito dos escravos negros tinham sido escritas por um português da mesma época. O que não diriam, nessa eventualidade, os autoproclamados antirracistas e as brigadas purificadoras da História sobre o alegado racismo dos nossos antepassados!