No Parlamento, há duas propostas do Governo para reforçar as competências do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA). Uma, altera a Lei de Defesa Nacional (LDN) e outra aprova uma Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), que baixa as posições da Marinha, Exército e Força Aérea com repercussões na defesa nacional e na organização e funcionamento das Forças Armadas. O Ministro da Defesa Nacional (MDN) comunicou as alterações, através da comunicação social, surpreendendo militares e público em geral e criando apreensões ao não divulgar estes projetos de decretos-lei.

Em ambas as propostas, a perda de autonomia dos Chefes de Estado-Maior dos ramos (CEM) e passagem à dependência hierárquica do CEMGFA para os assuntos militares, é justificada “com a melhoria da articulação político-militar, nomeadamente através de uma distinção mais clara entre a orientação estratégica e a execução, o reforço da unidade de comando das Forças Armadas, aos níveis estratégico e operacional, a minimização de redundâncias de competências e de estruturas e o esclarecimento de situações que podem ser equívocas quanto à linha de comando”.

Afirmar que se pretende alcançar este objetivo é um equívoco, pois a atual legislação já dá ao CEMGFA todos os instrumentos para exercer o comando operacional das forças e dos meios da componente operacional do sistema de forças em todo o tipo de missões das Forças Armadas, dispondo do Comando Conjunto para as Operações Militares. Enquanto responsável pelo planeamento e implementação da estratégia militar operacional, também já tem na sua dependência os CEM para questões que envolvam prontidão, emprego e sustentação das forças e meios da componente operacional do sistema de forças.

Desde 1982, o CEMGFA tem as competências adequadas ao cumprimento das missões operacionais das Forças Armadas e os anteriores detentores do cargo, oficiais generais com conhecimento, pensamento estratégico e experiência de comando e liderança, têm projetado, com os CEM, forças para várias partes do mundo, em missões de paz e humanitárias da ONU, NATO ou UE, honrando Portugal e merecendo rasgados elogios.

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Qual é, então, a questão de nível estratégico ou operacional que exige esta reforma da estrutura superior das Forças Armadas, quando tudo mostra que o fundamental da modernização passa por garantir os recursos (humanos e materiais) adequados aos três ramos? É o reforço das competências do CEMGFA que colmata as limitações à operacionalidade das Forças Armadas? A resolução de um problema não pode assentar em remendos descentrados da questão essencial e nenhuma força conjunta ou de componente (marítima, terrestre, aérea ou cyber) poderá ter melhor desempenho sem recursos adequados ao cumprimento das missões.

A fundamentação para a nova LOBOFA também refere que esta “não representa uma rutura com o passado e procura dar continuidade a reformas anteriores”. Tal afirmação é outro equívoco, porque a proposta rompe com a realidade atual, designadamente, em três aspectos:

  • Subordina os CEM ao CEMGFA, sem um desígnio nacional que o justifique;
  • Elimina a capacidade deliberativa do Conselho de Chefes de Estado-Maior, que passa a órgão de consulta do CEMGFA;
  • Alivia a agenda do MDN, passando os assuntos dos ramos a ser, na generalidade, intermediados pelo CEMGFA.

O MDN afirmou na Comissão de Defesa Nacional que está a pensar nos desafios do futuro e interessado nas reacções e ideias dos oficiais do ativo, que vão ser as forças armadas do futuro, não desprezando a experiência do passado. Posteriormente, disse que não são os militares do passado que devem decidir o funcionamento das Forças Armadas do presente e futuro. Tais afirmações dão uma visão muito diferente da realidade, porque:

  • Fala de futuro, sem tratar dos problemas atuais;
  • Mostra disponibilidade para um debate, que não existe;
  • Tenta passar a ideia de divisão entre militares do ativo, reserva e reforma, que não há;

Afirma que há militares a querer decidir as políticas de defesa, o que é uma deturpação.

Foi também dito que entre os países da NATO já não há um modelo parecido com o português, porque já evoluíram para um modelo em que o CEMGFA tem autoridade sobre os três ramos e sobre as valências da ciberdefesa e saúde militar. Mas, comparar a organização militar apenas pelo critério da subordinação hierárquica dos chefes dos estados-maiores dos ramos, é um processo perigosamente redutor para importar modelos de organização de forças armadas.

Para concentrar poderes no CEMGFA é também utilizado o argumento de que a maioria dos países aliados com Forças Armadas de referência, no espaço geopolítico da Europa ocidental e atlântica tem esse modelo. Contudo, não se podem comparar situações incomparáveis porque, dos 21 países que integram simultaneamente a NATO e a UE, apenas seis (Bélgica, Espanha, França, Irlanda, Luxemburgo e Países Baixos) e Reino Unido (NATO), são referidos como modelo que se pretende imitar. No entanto, verifica-se que, mesmo esses seis países têm diferentes regimes, desenvolvimento, forma de governo, cultura e tradições e até organização, recursos e capacidades das respetivas forças armadas. O próprio cargo mais elevado da hierarquia militar “Chefe de Estado-Maior de Defesa”, tem funções que não correspondem, na globalidade, às previstas nas propostas em discussão.

Tais diferenças são notórias quando comparados os conceitos estratégicos de defesa nacionais e os reflexos destes na organização das correspondentes forças militares.

O atual Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) não justifica a alteração do modelo em vigor. Além disso, o Governo também enviou ao Parlamento uma proposta de Lei das Grandes Opções para 2021-2025, reiterando uma “reorganização das Forças Armadas em função do produto operacional, no sentido de privilegiar uma estrutura de forças baseada em capacidades conjuntas e assente num modelo de organização modular e flexível e uma efetiva arquitetura de comando conjunto”, cuja discussão fica condicionada por estas propostas de reforço das competências do CEMGFA. Num país com problemas (sociais, económicos, financeiros, sanitários…), não se compreende que se crie um “não problema” sobre a estrutura superior das Forças Armadas sem que, previamente, seja discutido e atualizado o CEDN.

Os portugueses vivem em paz e democracia. Os monólogos do MDN e considerar que a defesa da autonomia dos ramos militares como “guerras passadas, de natureza corporativa”, e a desconsideração de militares da reserva e reforma fazem recordar tempos da “peste grisalha”, de má memória! Dizer que as críticas às propostas “são contra esta reforma”, é um erro, pois apenas apelam a um debate prévio, que inclua as Forças Armadas. Também não parece correto utilizar o facto de a maioria das opiniões serem expressas por militares da reserva e reforma, quando todos sabemos que os do ativo não se podem pronunciar publicamente.

Em assuntos que envolvem as Forças Armadas, não deve haver vencedores nem vencidos. Alterações da LDN e da LOBOFA aconselham consenso, tranquilidade, transparência e participação de especialistas dos ramos e do Instituto Universitário Militar, além do MDN e EMGFA, sem beliscar a coesão dos militares, fundamental nas Forças Armadas. Esta foi sempre a prática em processos legislativos deste âmbito, antes da decisão nos órgãos institucionais.

O défice de debate, pode ainda ser ultrapassado na Assembleia da República, onde a Comissão de Defesa Nacional tem a oportunidade de habilitar os deputados a decidirem, com conhecimento e responsabilidade, sobre matérias tão relevantes no âmbito da defesa nacional e das Forças Armadas.