“Portugal acolhe o primeiro escritório da OMS dedicado à tecnologia e empreendedorismo em saúde”. A notícia foi comunicada em fevereiro, com pompa e circunstância. Apelidado de “um facto de enorme importância para Portugal”, por colocar o país “na primeira linha da inovação tecnológica nos serviços de saúde” e representar também “um passo importante na ação da OMS a nível internacional”.
A parceria vive por estes dias um novo capítulo com o segundo simpósio da OMS sobre o futuro dos sistemas de saúde digitais, que decorreu no Porto. “O primeiro passo em direção à consolidação da presença da OMS em Portugal, depois da assinatura do joint statement para a criação do primeiro escritório em território nacional”, conforme se lê na nota publicada no site da direção executiva do SNS.
Mas, poderá a saúde digital inverter a tendência de degradação dos sistemas de saúde na Europa?
Será este escritório suficiente para imprimir a mudança necessária?
Este conceito — saúde digital — é usado com grande entusiasmo sempre que o objetivo é evidenciar o caráter inovador de uma intervenção. A maioria de nós recebe a mensagem como um sinal de esperança no futuro, embora não saiba ao certo onde começa e acaba tal conceito, nem tão pouco o impacto que tem ou pode vir a ter na sua vida.
Um editorial publicado recentemente no New England Journal of Medicine assegura que a saúde digital “mudou profundamente a prestação de cuidados”. Numa altura em que o desequilíbrio entre as necessidades da população e a disponibilidade de recursos humanos na saúde enche manchetes e alimenta acesos debates públicos, a saúde digital representa, indubitavelmente, uma janela de oportunidade. Por um lado, permite investir na prevenção e intervenção precoce, reduzindo a necessidade dos doentes serem admitidos num hospital ou outra instituição de saúde; por outro, pode mesmo substituir tarefas de baixo valor que ainda consomem muito tempo de profissionais de saúde altamente qualificados, sem motivo que o justifique.
No entanto, deixa também duas considerações adicionais.
Em primeiro lugar, a eficácia clínica tem sempre que ser provada. A saúde digital deve, à semelhança de toda a medicina, ser baseada em evidência e contribuir para gerar evidência. Significa, por isso, não apenas adotar práticas e tecnologias comprovadas, mas também gerar evidência que sustente a eficácia da intervenção em causa, identificando claramente a necessidade e a solução que lhe dá resposta, monitorizando e avaliando os resultados.
Em segundo lugar, a chave para as organizações de cuidados de saúde reside na aplicação sensata da tecnologia digital e na sua integração com os fluxos de trabalho que já caracterizam a prestação de cuidados. Uma certeza inequívoca: é na integração entre o presencial (offline) e o digital que se deve otimizar a saúde. Não precisamos de fogo de artifício em torno de intervenções que simplesmente transportam para o ambiente digital aquilo que já é feito de forma custo-efetiva, nem tão pouco de soluções que só adicionam complexidade a processos que são, por si só, complexos. Precisamos, sim, de integrar a tecnologia digital para redesenhar a forma como a Saúde alcança, interage, previne e trata os cidadãos ao longo de uma relação que se quer cada vez mais contínua, proativa, próxima e segura.
Reconhecendo o impacto que os avanços das tecnologias digitais têm na melhoria dos resultados em saúde, é paradoxal criar um escritório “local” para trabalhar a saúde “digital” se este não estiver perfeitamente alicerçado no terreno dos sistemas de saúde europeus.
Os passos conjuntos dados pelo Ministério da Saúde, Direção Executiva do SNS e OMS são da máxima importância, mas poderão ser efémeros se as próximas iniciativas não apontarem um caminho claro que permita transitar de um plano estratégico para um plano operacional. Algo que, no passado, nem sempre foi natural à OMS.
O desafio é claro. Fazer do SNS o primeiro sistema de saúde digitalmente integrado e não apenas um SNS com um “escritório” para o digital.