A promessa da vida eterna nunca me seduziu. Vivo bem assim, mas confesso que adorava poder ler o que se vai escrever sobre o nosso tempo nos próximos séculos. A cabeça desses historiadores futuros só poderá ficar em água quando perceberem que houve um período — para bem da humanidade, que não passe apenas disso — em que as gerações mais educadas e com mais acesso à informação de sempre travaram um combate contra a liberdade de expressão. Pior, alguns governos, a reboque, optaram por novas formas de censura para defender esse ideal de sociedade, distinguindo entre bom e mau populismo, graduando a ameaça em função da ideologia e fazendo depender a admissibilidade da crítica ao crivo dos autoproclamados donos da verdade e da virtude.
Era, infelizmente, uma questão de tempo até importarmos esta perigosa tendência de outros países. Nos Estados Unidos há vários anos que é denunciada uma cultura de intolerância crescente nos campus universitários, onde conferências são boicotadas e debates cancelados por ferirem as emoções de determinada minoria ou por simplesmente refletirem um ponto de vista contrário às convicções políticas de parte dessas comunidades. Este mesmo espírito censório é conhecido nas grandes tecnológicas americanas, com o exemplo paradigmático do Facebook, que já teve o seu líder na posição embaraçosa de justificar a eliminação de publicações pró-vida e, nos últimos meses, assistiu a uma debandada de trabalhadores, que exigiam mais intervenção da administração para sinalizar conteúdos políticos alegadamente falsos ou promotores de violência.
Recentemente, o ministro do interior espanhol, Fernando Grande-Marlaska, admitiu ter funcionários públicos a monitorizar as redes sociais com o objetivo de “verificar alguns discursos que possam ser considerados perigosos ou criminosos”. Ao El Mundo, confrontada com a ambiguidade aflitiva daquela declaração, uma fonte do ministério desenvolveu: “há elementos que vemos diariamente e que, sem revestirem natureza criminal, tentam intoxicar, causar inquietação e manipular a opinião pública”. Alguns dias depois, questionado sobre como as forças de segurança estariam a combater as notícias falsas, o General José Manuel Santiago, da Guarda Civil, proferiu uma frase que viria a provocar um terramoto político em Espanha, quase sem eco na nossa imprensa: “um dos objetivos é minimizar o clima contrário à gestão da crise por parte do governo”.
Como se pode ver, a intenção manifestada pela ministra Mariana Vieira da Silva de patrulhar as redes sociais não é inovadora e tem provocado um debate aceso noutros países. Em sentido contrário à passividade lusa, o povo espanhol percebeu o alcance e a gravidade da medida, que abre caminho à instituição de um Estado policial digital, mandatado para denunciar publicações e formalizar queixas-crime, que condicionem e intimidem quem não respeite os padrões definidos pelo Governo. Aqueles que, por cá, tanto denunciam o fascismo encapotado dos partidos populistas modernos não terão nada a dizer sobre esta nova forma de censura? Se as consequências do ódio já se encontram tipificadas na legislação penal, desconfiem destes impulsos para “monitorizar” o que exteriorizamos online. Os exemplos recentes provam que não passa de um eufemismo para legitimar práticas do tempo da outra senhora.
Para quem, como eu, valoriza este empecilho valioso para governantes que é a liberdade de expressão, independentemente da forma que assuma – e as redes sociais são, hoje, um instrumento indispensável no combate político -, o assunto é sério e merece máxima resistência. Regressamos ao perigoso campo das boas intenções, onde é indispensável que quem conhece a História e as atrocidades cometidas em nome de ideias aparentemente benevolentes, se insurja e relembre os novos idealistas que o agigantamento do Estado, limitando liberdades na persecução de um ideal de sociedade, conduziu-nos invariavelmente a regimes autocráticos ou totalitários, sem o mínimo de apego aos direitos fundamentais.
A aspiração pidesca de controlar o discurso nas redes sociais seria sempre preocupante e uma linha vermelha intolerável pela ameaça que representa ao nosso modelo de sociedade pluralista, que rejeita paternalismos e consultoria de pensamento, mas o cenário torna-se ainda mais grotesco quando pensamos no governo que pretende dar este passo. O mesmo que, esta semana, nomeou o segundo classificado do concurso para procurador europeu, sendo que a primeira, por coincidência, ordenou buscas ao Ministério da Administração Interna no caso das golas antifumo. O mesmo que teve uma ministra, na RTP, a justificar aquela exceção dada ao braço sindical dos comunistas no 1º de Maio, quando o país estava confinado, com a frase: “as organizações têm sempre outra forma de representação social”. O mesmo que não vê incompatibilidades em transferir Centeno das Finanças para o Banco de Portugal. O mesmo que se junta ao maior partido da oposição, em nostalgia pelo Bloco Central, para reduzir as condições de escrutínio parlamentar. E assim sucessivamente.
É esta gente que vai controlar o que escrevemos na internet? Como costuma dizer o meu avô Neca: escusam de ficar descansados.