Tudo o que vou escrever nos próximos parágrafos devia ser óbvio, um consenso absoluto entre democratas. Mas talvez o problema seja esse e faça sentido adaptar a célebre frase de Orwell: somos todos democratas, mas uns mais democratas do que outros. A Bielorrússia é só mais um exemplo em como, para a nossa esquerda radical parlamentar, primeiro está o socialismo e depois, eventualmente, a democracia. Rejeitam a evidência de que o coletivismo, nas suas diversas formas, é primo do fascismo e, partindo dessa crença, branqueiam o rasto de milhões de mortes e a miséria que as suas ideias promovem e causaram. Por isso, tal como os fascistas, não podem passar.

É um clássico da nossa vida política: quando algum regime socialista ou comunista, invariavelmente autocráticos, está em apuros, o PCP sai em defesa do ditador visado, denuncia o imperialismo americano e adota um discurso contra ingerências nos assuntos internos desse Estado. Já o Bloco, menos explícito, refugia-se num silêncio cobarde intercalado com disparos noutras direções, seja a líderes democraticamente eleitos que não gostam, seja a Bolívia ou outro delírio equivalente. Em comum, estes dois partidos têm a incapacidade de condenar líderes e governos ditatoriais quando estes defendem ideias próximas das suas. Não é “America First!”, mas com certeza que é a ideologia primeiro. Tanto em comum os populistas.

A liberdade e a democracia são inalienáveis. Qualquer projeto político que não as consagre na sua plenitude não serve, é tão simples quanto isto. Alguma vez eu, ou qualquer liberal digno desse nome, defenderia Pinochet – um ditador sanguinário, que não respeitava liberdades fundamentais — por mais afinidade com a sua inspiração económica? Ou Órban, outrora herói da resistência anticomunista, que, embora eleito com respeito pelas regras democráticas e aclamado pelo povo húngaro, não observa princípios básicos como a separação de poderes e a liberdade de imprensa? Nem chega a ser uma tentação na medida em que o primado do liberalismo político é, deste lado do espectro, inquestionável. Um defensor de democracias liberais não desvaloriza nem ignora valores de liberdade política ou económica. A liberdade dos indivíduos e, por consequência, das nações, precisa de todos esses valores assegurados.

Infelizmente, não podemos dizer o mesmo da esquerda parlamentar portuguesa, onde se inclui a agora denominada ala “pedronunista” do PS (tem até um deputado que já se deu ao luxo de celebrar a revolução bolchevique). Para estes, o fanatismo ideológico sobrepõe-se à velha máxima de que os fins não justificam os meios, facto que conduz à frequente legitimação de ditaduras atuais e relativização dos crimes daquelas que tiveram lugar no século passado. Por isso ficaram estupefactos e indignados quando, há cerca de um ano, o Parlamento Europeu aprovou, por esmagadora maioria dos votos, uma resolução que condenava, por igual, “os crimes contra a humanidade e as violações em massa de direitos humanos perpetrados pelos regimes nazi e comunista e por outros regimes totalitários”. Umas férias no Leste europeu e algumas conversas com quem viveu na pele a miséria desses regimes talvez contribuísse para interiorizarem alguma noção.

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O argumento intemporal destes coletivistas formais resume-se à convicção precária de que o fascismo é uma ideologia baseada no ódio e na discriminação, enquanto o socialismo e o comunismo defendem a igualdade e o bem-estar social. A distinção faz-se, assim, no plano teórico, ao nível dos valores e das intenções, para depois, no plano prático, seguirem uma de duas posições: negação dos factos comprometedores, enaltecendo méritos de políticas sociais e a sua veia progressista ou, em alternativa, negação desses regimes como exemplos de governação inspirado naquelas ideologias. Mas, sejamos claros, não há ginástica moral, nem destreza retórica que disfarce a incompatibilidade de tais ideias com a democracia e as liberdades fundamentais.

A prática arrasa sempre a utopia ideológica. Veja-se a dificuldade do PCP em condenar seja o que for na China, onde, para além da óbvia inexistência de liberdade política, é praticada a mais abominável forma de discriminação humana, o racismo racial e étnico, refletida nos “centros de educação” em Xinjiang, onde minorias como os uigures são detidas, doutrinadas e sujeitas a trabalho forçado. Recentemente, também a União Africana e outros países exigiram a intervenção do Estado chinês para fazer cessar comportamentos discriminatórios e humilhantes com a minoria de imigrantes africanos na China. Mais uma vez, dos nossos comunistas, negação e silêncio.

Na Bielorrússia, onde nada disto precisa de (nem podia) ser escrito e a oposição está presa ou exilada, milhares de heróis destemidos — muitos deles jovens como os que por cá fantasiam com o encantado mundo anticapitalista –, procuram libertar o país das amarras de Lukashenko e devolver a liberdade a um povo cansado de décadas de opressão. Estes, que conhecem na primeira pessoa as atrocidades daquele regime e sonham com o mínimo que damos por adquirido, que não se contentam com a distribuição da pobreza e não admitem ser menos do que livres, mereciam o respeito e a admiração de todos. Não podemos admitir, seja em que circunstância for, que haja espaço para regimes ditatoriais na Europa.

Enquanto a nossa esquerda parlamentar não chegar ao Século XXI e mantiver os double standards que caracterizam a sua ação política, determinada em rotular de fascistas todos os que dela discordem e sempre negacionista quando confrontada com regimes criminosos que partilhem o seu modelo de sociedade, não podemos baixar a guarda. Se um extremo político elege mais de trinta deputados, sendo normalizado por um partido charneira do sistema e a sua ameaça relativizada por moderados que estão exclusivamente focados no combate essencial a narrativas racistas ou catalisadoras de outros ódios inaceitáveis, talvez seja recomendável interromper o silêncio dos bons e voltar a colocar estes inimigos da democracia liberal no mesmo saco dos outros, depositado o mais longe possível do arco da governação. Os extremos não se combatem por catálogo ou calendário, não há espaço a qualquer conveniência, é uma luta de todos os dias.