Já o fazia pontualmente antes, mas desde 2003, após a publicação do meu primeiro livro sobre o tema, tento escrever livremente sobre educação. O obstáculo tem sido o de encontrar quem aceite publicar o que escrevo. Foi o desconforto com a liberdade limitada em que vivemos que fez de mim militante partidário. Numa altura em que se adivinhava o desastre eleitoral do governo de Santana Lopes, em fevereiro de 2005, fui pelo meu pé fazer a inscrição na concelhia do PSD da minha área de residência. Acreditava que os tempos de oposição seriam tranquilos para que se debatesse de modo consequente e estruturado o ensino básico e secundário e daí resultasse um projeto político convincente.
Era votante habitual do PSD, mas o lamentável estado ensino foi a razão da minha militância. Se os partidos políticos se contam entre os maiores responsáveis pelas graças e desgraças da educação, haveria que tentar essa via. Quase uma década passada continuo à espera, pagando as quotas e pouco mais. Talvez um novo ciclo de oposição abra as mentes para que se perceba a razão de falhanços sucessivos de diferentes ministros. Eles acabam também por ser bodes expiatórios de máquinas partidárias disfuncionais nesta área.
Se o sistema é ideologicamente dominado pela esquerda, das universidades aos autores de manuais escolares, passando pela máquina autónoma do ministério da Educação ou pelos sindicatos, o PSD, na qualidade de um dos maiores partidos políticos portugueses, é o que menos tem sido capaz de apresentar propostas sólidas que apontem diferenças substantivas e socialmente credíveis. Elas nem sequer são difíceis de estruturar e conseguir o apoio de parte da opinião pública. O problema é que isso exige capacidade de interpretar um conjunto de sintomas sociais que se manifestam todos os dias nas escolas mas que não captam a atenção séria dos partidos políticos, constituindo a indisciplina nas salas de aula um exemplo maior.
Um par de semanas antes da minha entrada pífia na militância partidária, em 2005, um episódio foi decisivo. Tinha um acordo para escrever na desaparecida «A Capital». Ao fim da segunda crónica intitulada «Mostrengo» fui sumariamente afastado pelo diretor do jornal, Luís Osório. Partilhava a página das minhas ousadias analíticas sobre o ensino com outros paladinos da liberdade de esquerda, no caso Daniel Sampaio e um grupo autointitulado Inquietações Pedagógicas. Estes e outros, como o delicodoce Eduardo Sá, são responsáveis por aquilo que então já era o rumo problemático das políticas educativas que eles sempre têm condicionado com fortes componentes de irresponsabilidade. E assim nos temos arrastado, entre a imposição da censura a uns (nem a “africanidade” e o percurso vivencial de pobreza salva quem não é de esquerda) e o direito à irresponsabilidade de outros, muitas vezes bem-nascidos.
Isto também vem a propósito de um episódio que li esta manhã no Observador. A equipa cessante de responsáveis da revista Análise Social, supostamente das publicações mais prestigiadas na área das ciências sociais – João de Pina-Cabral, Catarina Fróis, Helena Jerónimo, José Neves, Pedro Ramos Pinto e Renato do Carmo – queixa-se da censura do diretor do ICS, José Luís Cardoso. Este retirou de circulação o último número da revista por causa de um artigo ideologicamente explícito da autoria do sociólogo Ricardo Campos. São esses mesmos queixosos de agora que recusaram sucessivos pedidos meus de artigos para publicação. Tentei contestar essas decisões que afetam gravemente a liberdade de produzir conhecimento em meios académicos, situação bem mais grave do que o que acontece na imprensa, avançando com uma publicação “comercial” com o título “O colonialismo nunca existiu!” (passo a publicidade).
Comparando o conteúdo deste livro com o que tudo indica ser o “alegadamente” censurado artigo científico de Ricardo Campos será facílimo identificar quem são os donos ideológicos das universidades públicas e quem tem sentido pressões para se afastar dos meios académicos, para desistir, ou a procurar acolhimento em instituições privadas. E sem artigos publicados nas revistas ideológico-científicas do regime não há candidaturas a contratos para investigador na FCT que tenham hipóteses, até porque a regra é a de os membros dos júris beberem da mesma fonte.
Outra característica que espelha o controlo ideológico do pensamento, com reflexo nas revistas científicas, para além de quem pode ou não publicar e como, é a das bibliografias dos artigos, teses e por aí adiante. Existem autores que aparecem vezes sem conta, ou têm de aparecer, e outros que não convém colocar em determinados ambientes. No meio africanista que conheço, Boaventura de Sousa Santos fica sempre bem. Jaime Nogueira Pinto não ajuda. Mesmo que a qualidade do trabalho do último seja muitíssimo superior à qualidade do trabalho do primeiro e não subsidiado nos avultados montantes do primeiro. Numa pesquisa que fiz sobre relações raciais, um dos autores mais importantes de que tomei conhecimento, Dinesh de Souza, nunca me foi referido pelas pessoas do meio com quem falei sobre o tema e só por acidente soube do livro “The end of racism”. Não sendo o autor de esquerda e ousando tocar num dos feudos dos ditos, o racismo, o livro datado de 1995 até hoje não teve direito a tradução por cá, em tantas que se fazem.
Infelizmente o ambiente em Portugal em matéria de liberdade de pensar, sobretudo para quem não tem pedigree, é tudo menos saudável. A graça é que sobram sempre alguns nichos de exceção, mais ou menos como no tempo de Salazar.
Historiador, especialista em estudos africanos